“Há um descompasso das instituições com as questões urgentes para a população”
A crise por que passam as instituições brasileiras incentivou uma disputa por espaço entre elas. Muitas vezes isso resulta em mudanças na legislação penal e processual penal. Por isso, segundo o advogado e professor Silvio de Almeida, o país precisa discutir o papel do Judiciário e os limites da jurisdição.
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, Almeida acredita que essa disputa distancia as instituições das questões mais urgentes para a sociedade. “Há uma disputa dentro do próprio Estado por grupos que querem tomar a frente. O ativismo judicial é resultado dessa disputa e de uma democracia tímida, de um momento em que as pessoas não conseguem compreender quais são os limites da sua própria ação”, afirma em entrevista à ConJur.
Neste ano, Silvio está à frente da comissão organizadora do 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), entre os dias 28 e 31 de agosto. A grande novidade do seminário, segundo ele, “é o fato de que todos os painéis foram pensados e escolhidos em torno do tema dos ‘30 anos da Constituição Federal de 1988’”.
Leia a entrevista:
ConJur — Atualmente, qual é o principal gargalo da Justiça?
Silvio de Almeida — Há muitas discussões sobre ativismo judicial e separação de poderes, por exemplo, que acabam “caindo no vazio”. O mais grave hoje é que existe um descompasso das instituições com a população e com as questões mais urgentes que a sociedade apresenta. É importante discutir a questão do papel do juízes, os limites da atuação jurisdicional, mas também acredito que diante de um contexto de crise em que há uma disputa dentro do próprio Estado por grupos que querem tomar a frente, é melhor tentar entender o que causa a disputa no ativismo judicial. Estamos afundados numa crise, a desigualdade é flagrante e essas disputas são cada vez mais violentas.
ConJur — O Judiciário está incluído nisso?
Silvio de Almeida — Vamos pegar o exemplo do Ministério Público. Temos notícias nos jornais de disputas abertas entre membros das próprias instituições com trocas de ofensas, formas inusuais de contestar decisões que são tomadas por colegas que fazem parte da mesma instituição. Isso é sinal de que as coisas saíram de uma gramática institucional de aparente normalidade.
O que eu chamo de violência é isso: não existe mais um processo, não existe mais a possibilidade de as próprias instituições internalizarem seus processos de disputa. Elas não conseguem manter dentro de uma dinâmica de lógica institucional da normalidade os processos de disputa interna.
ConJur — Essa situação é excepcional?
Silvio de Almeida — Isso sempre aconteceu, mas agora estão ganhando as ruas, as pessoas estão discutindo no cotidiano o STF. E o STF não é uma coisa muito simples de entender. Mas é excepcional fundamentalmente por causa do contexto. O Judiciário que temos é o resultado da sociedade e, com isso, falo da economia, da desigualdade que nós naturalizamos no Brasil e da simetria de relações políticas que nós cultivamos. Falo também da normalidade com que nós dispensamos a democracia e a participação popular nas decisões fundamentais.
ConJur — É preciso rediscutir as instituições?
Silvio de Almeida — No Brasil não se discute instituição. O papel da advocacia e das corporações de advogados também está em crise. A OAB teve uma função muito importante em momentos decisivos do Brasil, mas também já desempenhou papéis lamentáveis na história. Eu entendo que a OAB e a advocacia como um todo se encontram nessa encruzilhada sobre o seu papel diante de um mundo que se esfacela.
ConJur — Em que sentido?
Silvio de Almeida — Para ser advogado é fundamental estabelecer uma relação de confiança com seus clientes. O advogado deve ter a condição de avaliar o cenário e adiantar ao cliente o que pode ou não vir a acontecer. O problema é que, com esse nível de violência institucional, a advocacia sofre porque não tem como ser combativa, não consegue exigir das autoridades o respeito alheio e também não tem como adiantar as consequências do que pode acontecer com o cliente, uma vez que existe um cenário de imprevisibilidade absurdo. Hoje, o juiz pode tomar uma decisão que vai contra a tradição daquilo que foi consolidado pela jurisprudência, pode fazer uma interpretação totalmente diferente do que a doutrina vem consolidando durante algum tempo. Isso causa insegurança jurídica.
ConJur — Qual deve ser a aplicação do Direito Penal?
Silvio de Almeida — Algumas pessoas acham que Direito Penal é um instrumento de punição e isso é algo que tem ficado muito em voga. Na verdade, o Direito Penal e o Processo Penal são tecnologias do exercício de poder sobre outras pessoas, sobre grupos sociais tidos como indesejáveis ou indivíduos que cometem atos condenáveis, atos ilícitos. Outras pessoas também vão dizer que o Processo Penal é uma forma de estabelecer limites à atuação do poder estatal e também formas de garantir a preservação da liberdade individual de indivíduos que pertencem a certos grupos. A crise, nesse sentido, acontece quando você não consegue manter a sociedade funcionando e essas formas estáveis com os instrumentos regulatórios e as instituições que já existem.
ConJur — Há solução em meio a essa crise?
Silvio de Almeida — As soluções que temos já não cabem diante do tipo de conflito e principalmente da violência de conflito que estamos observando. Quando falamos em crise do Direito e do Estado, estamos falando de uma crise de regulação. Não temos parâmetros jurídicos, políticos e morais para lidar com os problemas que o próprio sistema cria. Proponho reflexões sobre a democracia no contexto de crise. Porque quando é necessário preservar valores como o poder do Estado, o direito à propriedade ou a mercadoria, não se tem qualquer dúvida em restringir a democracia.
ConJur — Nesse contexto de ‘crise do Estado’, o Direito Penal pode garantir ou diminuir os direitos fundamentais?
Silvio de Almeida — Todas as vezes em que há uma crise econômica, uma das primeiras coisas afetadas é a possibilidade de participação popular e do exercício das liberdades públicas. E a democracia está diretamente relacionada aos períodos em que é possível estabelecer uma regulação sem uso sistemático da violência. O Direito Penal pode, eventualmente, estar sendo usado como uma resposta à crise, mas no sentido de retirar a liberdade das pessoas, retirar a democracia, restringir a participação para lidar com as insatisfações populares que são geradas pela crise.
A crise sempre gera uma disputa econômica, porque ela é essencialmente uma questão econômica em que as pessoas disputam o que é produzido pelo trabalho da sociedade. Em crise, o espaço distributivo diminui e a luta se torna muito mais violenta, e aqueles grupos que têm poder obviamente vão querer avançar sobre isso. Podemos ver o que está acontecendo no resto do mundo: crise de imigração, as denúncias de corrupção que envolvem grandes empresas… Alguns vão identificar o caráter seletivo, porque essas questões criminais que envolvem as empresas são justamente parte de uma disputa de poder entre os setores do empresariado. Entre o setor financeiro e o setor industrial. Enfim, é importante entender como o Direito Penal é utilizado como uma arma dentro das disputas de grupos no interior da crise.
ConJur — É preciso reformar o sistema de Justiça?
Silvio de Almeida — Há várias formas de pensar esse problema e foi justamente um tema que eu gostaria que as pessoas tivessem a possibilidade de ouvir no seminário do IBCCrim. Nós estamos numa quadra civilizatória bastante complexa que nos exibe um pensamento que vai muito além do pensamento técnico. Pode ser que as técnicas do Direito Penal e do Processo Penal não sejam suficientes para lidar com os problemas que são da sociedade em crise.
ConJur — Qual é o diferencial do seminário deste ano?
Silvio de Almeida — A ideia foi expandir e apostar numa leitura das ciências criminais que não ficasse restrita aos assuntos que são típicos ou tradicionais. Ou seja, tentamos fazer uma leitura mais ampla sobre o papel dessa ciência no contexto atual, diante da crise e diante de todos os problemas que não só o Brasil, mas o mundo vive. Para isso, tentei compor os painéis e as conferências com nomes que tem muito a dizer sobre o Direito Penal, mas que, ao mesmo tempo, coloquem essa técnica a serviço de uma reflexão crítica e política da realidade.
Além disso, é um seminário que preza por equidade mais do que pela diversidade. Não queremos “colorir” as mesas, colocamos pessoas que vão realmente falar a partir do seu lugar, mas falar para o mundo e do mundo. Temos, por exemplo, uma mulher negra, juíza federal do Rio de Janeiro, doutora em Direito Penal que vai falar sobre compliance, não sobre racismo. Vão homens e mulheres negros falar sobre justiça criminal, e eles vão falar sobre racismo, porque não existe possibilidade de falar sobre justiça criminal no Brasil sem falar de racismo. O seminário é recortado por isso, não é um tema lateral, não tem um “puxadinho para falar”, não é isso. O presidente do seminário é preto, não tem escapatória.
ConJur — O senhor frequentemente diz que “não dá para falar de racismo sem contar com a mão do Estado”.
Silvio de Almeida — Sim, porque o racismo é estrutural. O racismo é um processo em que as condições de desigualdade vão se reproduzindo. Ou seja, eu quando nasci o meu corpo já tinha um significado para além daquele que eu pudesse receber depois e para além daquele que eu pudesse eu mesmo estabelecer. A luta por liberdade do homem e da mulher negra também é uma luta para ressignificar o próprio corpo e para mostrar que você pode estar em outros lugares. É uma luta muito dura e que cobra muito do ponto de vista emocional e psíquico.
Nova Lindb busca responsabilizar juiz que agir como administrador, diz Sundfeld
Como muitos magistrados e integrantes de órgãos de controle vêm agindo como se fossem administradores públicos, a nova Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb) buscou garantir que eles suportem os ônus dos integrantes do Executivo caso extrapolem suas competências. É como o professor Carlos Ari Sundfeld, da FGV Direito SP, resume as intenções do texto.
Nova Lindb pretende inibir vontade de fazer política pública por meio de decisões judiciais, afirma o professor Carlos Ari Sundfeld, um dos autores da lei.
Reprodução
Um dos principais nomes do Direito Administrativo brasileiro, Sundfeld é, junto com o professor Floriano de Azevedo Marques, diretor da Faculdade de Direito da USP, autor da lei. Em palestra nesta quarta-feira (29/8), Carlos Ari Sundfeld explicou que a lei apenas obriga ao juiz que pretender desenhar políticas públicas com suas decisões avaliar as consequências de seus despachos.
Em evento sobre os impactos da nova Lindb no Direito Tributário ocorrido na FGV Direito SP, na capital paulista, Sundfeld disse que a norma buscou reduzir a interpretação casuística do ordenamento jurídico e dar coerência à aplicação do Direito Público.
Alguns órgãos de controle, especialmente o Tribunal de Contas da União e a Procuradoria-Geral da República, reclamaram das mudanças na lei. Alegaram que ela atrapalharia o combate à corrupção, já que exigiria fundamentação e avaliação de consequências de decisões.
Segundo o professor Sundfeld, a tendência é que cada ramo do Direito se justifique com a própria peculiaridade para deixar de aplicar a nova Lindb
Nessa linha, o também professor da FGV Direito SP André Rodrigues Corrêa manifestou ceticismo quanto à adoção de um rigor metodológico pelas instituições públicas. Para ele, enquanto não se acreditar que decidir da maneira mais coerente com o ordenamento jurídico é o melhor para o sistema, nada vai mudar. Sem essa convicção, analisa, magistrados e integrantes de órgãos de controle darão um jeito de não aplicar as diretrizes da nova Lindb.
Fim da hierarquia
A hierarquia das normas não está mais funcionando, afirma o professor da USP Tercio Sampaio Ferraz Júnior. No lugar da pirâmide de Kelsen, que organiza as leis de acordo com seu peso no ordenamento jurídico a partir da Constituição, passou a vigorar um sistema em rede, onde não há gradações.
No entanto, ressalta o jurista, há quem diga que a rede foi superada por um modelo de rizoma. Voltado para si mesmo, este sistema funciona em sucessões progressivas. Cada decisão se alastra até um certo ponto e se interrompe. Depois, pode ser retomada, e dar origem a uma nova cadeia normativa, explicou Ferraz Júnior.
“A Lindb é uma tentativa de lidar com esse rizoma. É algo que a gente percebe no meio constitucional: hoje não sabemos mais o que é válido e o que não é válido. A própria noção de validade tem que ser substituída”, opinou.
O professor também disse que as normas da Lindb, em geral, têm natureza interpretativas – são “normas de normas”. Mas nem sempre. Ao estabelecer que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, a lei criou um ônus para os gestores estatais. “Com esse artigo, tem que ter coragem para assumir um cargo público”, declarou Ferraz Júnior.
Aplicação ao Carf
Já Eurico Marcos Diniz de Santi, professor de Direito Tributário da FGV Direito SP, afirmou que a Lindb é aplicável a todas as autoridades fiscais, órgãos administrativos e judiciais, nas esferas federal, estaduais e municipais.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) está debatendo se as normas da lei se aplicam a processos administrativos tributários. Recentemente, o órgão entendeu que a Lindb só tem efeito em suas decisões administrativas, mas não nos processos.
De Santi, contudo, lembrou que Carlos Ari Sundfeld já opinou pela incidência da norma aos processos do Carf. O especialista em Direito Administrativo deu o exemplo do Fisco que fica inerte por muito tempo sobre a incidência de um tributo e depois diz que ele deveria ter sido cobrado em anos passados. Nesse caso, ao se manter inerte durante anos, há uma prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público, citou Sundfeld.
Logo, na visão do autor da Lindb, aplica-se o artigo 24. O dispositivo estabelece que a revisão de ato ou processo administrativo levará em conta as orientações gerais da época. E estas são as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
Ler mais“Em temas morais, princípios nem sempre são suficientes para decidir”
Os princípios constitucionais nem sempre são suficientes para a tomada de decisão em temas morais de grande indagação, pois não existem verdades absolutas no campo moral. É o que sustenta o desembargador federal Paulo Gustavo Guedes Fontes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), em Neoconstitucionalismo e Verdade – Limites democráticos da jurisdição constitucional (editora Lumen Juris), livro em que faz uma análise original e erudita sobre o neoconstitucionalismo e a jurisdição constitucional moderna.
Na obra, que é resultado de sua tese de doutorado em Direito do Estado na USP, Paulo Fontes resgata conceitos da filosofia moral, dialogando sempre com diversos filósofos da área e juristas, clássicos e modernos, como Alexy, Dworkin, Ferrajoli, Zagrebelsky e Waldron, aborda a teoria constitucional e faz considerações próprias sobre o neoconstitucionalismo, procurando saber se existem verdades no campo moral e questionando, inclusive, a legitimidade do juiz constitucional para dirimir questões morais de grande indagação.
O desembargador, que também é professor de Direito Constitucional do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP), ainda compartilha das críticas que vêm sendo dirigidas à ponderação de princípios ou valores.
Nas questões que envolvam os direitos econômicos e sociais, por exemplo, afirma que, em certos casos, as concepções sobre a igualdade e a liberdade são incomensuráveis e remetem, em última análise, a adesões e preferências, ou mesmo a visões de mundo e concepções políticas mais amplas.
O autor cita ainda algumas dificuldades que adviriam do que o próprio Alexy denomina de “incerteza sobre as premissas fáticas”. “Poderíamos invocar a polêmica em torno do aborto; cientificamente, não saberíamos dizer qual o marco inicial da vida humana. Poderíamos também invocar fatos mais complexos, de difícil avaliação por sua amplitude sociológica, como os benefícios que podem advir de uma política de ações afirmativas. Seriam exemplos possíveis de incerteza quanto a premissas fáticas. As incertezas em questão estão muito ligadas a premissas propriamente valorativas”, sustenta.
O livro Neoconstitucionalismo e Verdade – Limites democráticos da jurisdição constitucional será lançado em São Paulo nesta quinta-feira (30/8), às 18h30, na Livraria da Vila da alameda Lorena, 1.731, bairro Jardim Paulista.
Leia a entrevista com o desembargador:
ConJur — O que vem a ser o neoconstitucionalismo, tema central da obra?
Paulo Fontes — A própria definição do neoconstitucionalismo já é polêmica. Alguns autores afirmam que ele não existe. Mas penso que, independentemente de se assentir ou não ao neoconstitucionalismo, e eu próprio tenho uma postura crítica, ele é uma realidade como corrente do pensamento constitucional moderno e também como tendência jurisprudencial. Suas raízes repousam sobre algumas características: o advento da Constituição rígida, superior às demais normas do ordenamento jurídico, o advento do controle de constitucionalidade realizado por um órgão judicial ou de natureza jurisdicional e o caráter principiológico das constituições modernas, em que os chamados princípios constitucionais têm grande importância. Poder-se-ia dizer ainda que o neoconstitucionalismo advoga uma reaproximação entre o Direito e a moral que seria propiciada pelos princípios constitucionais e, por fim, que essa corrente confere grande importância e alcance ao papel da corte constitucional nas democracias modernas.
ConJur — Esse conceito tem vertentes?
Paulo Fontes — Sim, essa concepção pode comportar variações. Luigi Ferrajoli, por exemplo, exalta as possibilidades do novo Estado constitucional, mas ao mesmo tempo adverte para seus riscos. Também Luis Pietro Sanchís defende o que chama de “constitucionalismo forte”, que corresponderia ao neoconstitucionalismo, mas também exprime o receio de que a supremacia da Constituição se transforme pura e simplesmente em supremacia do Judiciário.
ConJur— O título também menciona a palavra verdade. Existem verdades no campo moral?
Paulo Fontes — Essa é uma grande questão da filosofia moral. Existem correntes para as quais existem, sim, verdades morais e respostas corretas para os problemas morais; seria basicamente o realismo ou objetivismo moral. As religiões também em geral adotam uma forma de objetivismo moral. Para outras correntes, geralmente agrupadas sob o nome de ceticismo ou relativismo moral, ou ainda não cognitivismo, não existem essas verdades ou pelo menos elas não “estão no mundo”. Dependeriam da época, da história, da sociedade de que se trata e até da subjetividade dos indivíduos. Em se tratando de valores morais, não haveria o certo e o errado, mas preferências e atitudes diversas.
ConJur — Qual posição o senhor defende?
Paulo Fontes — Eu rejeito o objetivismo ou realismo moral. Defendo, por exemplo, que não há uma verdade objetiva sobre o aborto ou a eutanásia, um certo ou errado absoluto para essas questões. Ao mesmo tempo, admito que em certa medida pode haver, sim, respostas corretas em muitos temas e questões morais, principalmente quando aparecem em casos concretos com muitas particularidades e condicionantes. Para mim, na linha de Richard Rorty, essas respostas, não corretas, mas melhores que as outras, adviriam da própria história do homem, do desenvolvimento das ideias e das instituições, das convenções.
Por isso um ‘relativismo ou não cognitivismo moderado’. Admite-se em certa medida a existência de respostas corretas no campo moral, mas não que essas respostas existam em todos os temas, sobretudo naqueles mais abstratos, que vão espelhar escolhas valorativas difíceis de serem confirmadas ou rejeitadas de forma racional. É certo torturar um criminoso para evitar um assalto no dia seguinte? E para evitar a detonação de uma bomba atômica? Rorty assevera que quem acha que existe uma resposta correta para uma questão dessas ainda é um teólogo!
ConJur — De que forma relaciona o neoconstitucionalismo com a filosofia moral?
Paulo Fontes — Existe uma relação muito próxima entre as correntes da filosofia do direito e as correntes da filosofia moral, especialmente no campo da metaética. O jusnaturalismo, por exemplo, ao acreditar que existe um “justo” objetivo, para além do direito positivo, de alguma forma alberga o objetivismo moral. Já alguns autores positivistas são explícitos em adotar o relativismo moral. Kelsen chega a afirmar que o relativismo moral é a base da sua teoria pura do direito; ele diz que se houvesse verdades morais o direito seria desnecessário.
Tentei no livro demonstrar que o neoconstitucionalismo também adota de certo modo uma ética objetivista. Ao sustentar uma reaproximação entre o Direito e a moral, propiciada, como diria Alexy, pelo caráter aberto dos princípios constitucionais, e ao erigir esses mesmos princípios em principais parâmetros de decisão, penso que esses autores estão admitindo que podemos encontrar respostas certas para questões morais às vezes de grande indagação e complexidade. Isso me parece muito claro na obra de Ronald Dworkin e também em autores como Robert Alexy e Gustavo Zagrebelsky. Como penso que a moral ou mesmo os princípios constitucionais não conseguem fornecer sempre essas repostas, derivo daí algumas posições mais restritivas sobre as possibilidades da jurisdição constitucional.
ConJur — Como conclui que princípios constitucionais são insuficientes para a tomada de decisões em temas de cunho moral, como o aborto ou a eutanásia?
Paulo Fontes — Não afirmo que os princípios constitucionais são “sempre” insuficientes. Eles contêm uma carga moral ou axiológica elevada e a atividade jurisdicional pode incluir e quase sempre inclui um raciocínio moral. Concordo com muitas, talvez a maior parte das decisões do Supremo baseadas em princípios.
O que afirmo, justamente, é que nem sempre os princípios são capazes de fornecer uma resposta correta para todos os temas que cheguem à corte constitucional. Não é porque um tema é levado à corte, que tem de obter uma resposta substantiva. A meu ver a corte pode reconhecer a insuficiência normativa da Constituição sobre determinado tema e deixar a decisão para o legislador ou para o povo através de mecanismos diretos de participação. Zagrebelsky, que é um defensor do ‘direito por princípios’ e, portanto, pode ser considerado um neoconstitucionalista, defende que a corte suprema deixe um espaço importante para a atividade legislativa, sob pena de asfixiar a democracia. Se os princípios contêm todas as significações, todas as respostas devem vir da corte constitucional!
No livro, por exemplo, faço a crítica da decisão do Supremo que proibiu a doação eleitoral por empresas. Até penso que não deveria existir esse tipo de doação, mas a meu ver nada na Constituição as proíbe efetivamente, e noções como a democracia ou o Estado Democrático de Direito me parecem insuficientes para resolver o problema, até porque há democracias que convivem com as doações de empresas. Pode-se até citar estudos recentes afirmando que a decisão do Supremo incentiva o próprio caixa dois.
ConJur — No caso do aborto, como avalia as decisões do STF até o momento? Poderiam ter sugerido, por exemplo, um limite de semanas para interrupção da gravidez?
Paulo Fontes — No livro, não tive a pretensão de fixar limites objetivos ao que pode ou não ser decidido pela corte constitucional. Falo de autocontenção, de prudência, de minimalismo em alguns casos, mas cada caso é um caso. Não discordo e não critico, por exemplo, as decisões do Supremo sobre células-tronco ou sobre o feto anencéfalo. Os ministros se basearam em grande parte na inviabilidade da vida tanto dos embriões excedentes de procedimentos de fertilização, quanto do feto sem cérebro. Princípios como o da proporcionalidade e da razoabilidade operaram aqui, a meu ver, de forma aceitável.
Já no caso do autoaborto tout court, parece-me que concorrem concepções valorativas e mesmo cognitivas opostas, que não podem ser dirimidas pelos ministros com base no direito à vida, dignidade da pessoa humana ou intimidade da mulher. Eu próprio sou favorável à adoção de uma legislação que permita o autoaborto até a 12ª semana de gestação, mas penso que resposta não deve vir do Supremo. Para quem adota uma posição concepcionista, por exemplo, de que a vida começa com a concepção, não se cogita de um direito da mulher ao próprio corpo, pois estaria ali uma vida independente dela.
Outros países autorizaram o aborto através da legislação, como a França com a ministra Simone Veil, sepultada recentemente no Panthéon. A Irlanda o fez esse ano através de um plebiscito. A Argentina tentou também fazer por meio de lei, mas o Senado acabou rejeitando, o que não impede novas tentativas. Penso que esses processos são ricos para a democracia. Onde a permissão se deu por decisão da corte constitucional, como nos EUA, a legitimidade da decisão Roe x Wade de 1973 ainda é questionada e divide a sociedade e os estudiosos.
ConJur — Existe hoje ativismo exacerbado por parte dos ministros?
Paulo Fontes — Não utilizo o termo “ativismo” no meu livro, porque às vezes é empregado de forma simplória e abrangendo situações muito diversas. Não trato no trabalho, por exemplo, de questões penais. Por outro lado, reconheço o papel insubstituível da corte constitucional na defesa dos direitos fundamentais. Mas, sim, com certa simplificação, posso dizer que há algum ativismo na utilização dos princípios, justamente porque são sempre tidos como parâmetros suficientes para a decisão.
ConJur — O que é ser cético no campo da Ética?
Paulo Fontes — É não acreditar que existem verdades morais, respostas corretas para as várias questões como aborto, eutanásia, pena de morte etc. Mas para a maioria dos autores dessa corrente, o ceticismo não impede que os céticos tenham suas posições morais. Eu, por exemplo, que de alguma forma concordo com o ceticismo, tenho meus pontos de vista morais e os defendo com vigor: sou a favor do autoaborto, como disse acima, e tenho meus argumentos; sou contra a pena de morte etc. Mas haveria uma diferença entre acreditar nos pontos de vista morais como pontos de vista e acreditar neles como verdades. Alguns autores verão aí uma contradição do ceticismo e tento rebater a crítica no livro. Cito uma frase do economista Joseph Schumpeter segundo o qual ‘perceber a validade relativa das próprias convicções, mas ainda assim defendê-las de forma intransigente é o que distingue o homem civilizado do bárbaro’.
No livro, tento mostrar ainda as afinidades do ceticismo com a tolerância, a liberdade e a democracia.
ConJur — E como a corte constitucional deveria agir diante de temas com valores colidentes e difíceis de mensurar?
Paulo Fontes — Excelente questão. Talvez a mais difícil de responder. Defendo que os princípios constitucionais são uma realidade positiva do direito constitucional moderno. Eles alteram realmente a natureza da jurisdição constitucional, emprestam-lhe maior alcance. Isso também torna inarredável, inafastável a chamada ponderação de princípios ou de valores. Aliás, a ponderação é algo que sempre ocorreu no direito, mas ganha relevância na jurisdição constitucional moderna. Há casos em que ela ocorre e está eivada de subjetividade, mas mesmo assim não há o que fazer, o juiz constitucional tem de ponderar.
Mas a ponderação tem seus limites, e tento mostrar isso no livro. O próprio Robert Alexy, defensor da ponderação, assevera no posfácio de seu Teoria dos Direitos Fundamentais que há os casos de discricionariedade estrutural e de discricionariedade epistêmica, em que justamente a ponderação se tornaria muito subjetiva, envolvendo escolhas políticas e, portanto, em nome do princípio democrático, a corte constitucional deveria deixar a escolha para o legislador.
Ler maisRéu não é obrigado a comparecer à audiência de instrução, diz desembargador
Antes de ser um meio de obtenção de prova, o interrogatório é um direito à autodefesa do réu, e não um dever processual. Por isso, não pode o denunciado ser obrigado a comparecer a audiência de instrução se manifestou seu desinteresse.
Esse foi o entendimento do desembargador Fernando Wolff Bodziak, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, ao deferir um pedido de liminar em favor de um preso para desobrigá-lo de comparecer à audiência de instrução.
O homem, que já cumpre pena por furto, afirmou que, se for levado para o interrogatório em juízo, os demais detentos poderiam tomar conhecimento da acusação de estupro de vulnerável a que ele responde, o que colocaria em risco a sua integridade física.
A defesa do condenado, feita por Eduardo Lange, Guilherme Maistro Tenório Araújo e Lucas Andrey Battin, do Maistro, Barrini & Lange Advogados, argumentou que, se não estivesse preso, o paciente poderia simplesmente não comparecer ao ato, mas como está no Centro de Reintegração Social de Londrina (Creslon), ele será conduzido coercitivamente até o juízo, medida declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
A tese foi acatada pelo desembargador Bodziak, que afirmou que “as razões pelas quais o réu pretende não comparecer ao interrogatório são irrelevantes”, uma vez que o interrogatório não é um dever processual e “a circunstância de o réu estar preso não altera ou retira as opções a ele conferidas”.
“Logo, considerando que o réu foi devidamente citado, possui advogado constituído e foi intimado para comparecer à audiência de instrução para ser interrogado, não se verifica nenhum impedimento em ser atendido o pedido do denunciado em não ser conduzido ao juízo para ser ouvido”, concluiu, reformando a decisão do juízo de primeiro grau que indeferiu o pedido de dispensa ao comparecimento do réu para ser interrogado na audiência de instrução.
Clique aqui para ler a decisão.
Processo 0034422-53.2018.8.16.0000
Para AGU, juízes não devem julgar casos em que escritórios de familiares atuem
Em razão da imparcialidade do Poder Judiciário, a Advocacia-Geral da União se manifestou a favor da proibição de que juízes julguem processos nos quais atuem escritórios de advocacia de cônjuges ou familiares.
A questão será decidida pelo Supremo Tribunal Federal em ação na qual a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questiona a constitucionalidade da restrição, prevista no artigo 144 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/16). A ação, que ainda não tem data para ser julgada, está sob relatoria do ministro Edson Fachin.
Para a AMB, é impossível que o juiz sempre saiba se o caso que vai julgar tem como parte pessoa defendida por escritório de advocacia de um familiar. Dessa maneira, a causa de impedimento do artigo 144, VIII, do CPC, viola os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e de que a pena não passará da pessoa do condenado.
Para a AGU, no entanto, a proibição é uma forma de garantir a imparcialidade do Poder Judiciário e concretizar os princípios constitucionais do devido processo legal e do juiz natural. “A concepção de juiz natural pressupõe a imparcialidade do órgão julgador, o qual deve se manter equidistante das partes no processo, isento de qualquer tipo de interesse no julgamento da causa”, diz o órgão em trecho da manifestação.
O órgão diz ainda que a imparcialidade do Judiciário é tão relevante que a Constituição, ao mesmo tempo em que garante a independência do juiz no exercício de suas funções, de modo que não se sujeitem a interferências políticas, veda a prática de diversas condutas, a fim de evitar que situações ou interesses pessoais comprometam a adequação do julgamento. Com informações da Assessoria de Imprensa da AGU.
Clique aqui para ler a manifestação da AGU.
ADI 5.953
Judiciário brasileiro tem 80,1 milhões de processos em tramitação
Cerca de 80 milhões de processos tramitam atualmente no Judiciário brasileiro, segundo o relatório Justiça em Números de 2018. Isso representa um aumento de 44 mil ações em relação ao levantamento passado.
Os dados, divulgados nesta segunda-feira (27/9) pelo Conselho Nacional de Justiça, mostram ainda que, se não entrasse mais nenhum processo no Judiciário, seriam necessários cerca de dois anos e meio para zerar o acervo. Isso porque, com 18.168 magistrados em atuação, a magistratura brasileira julga em torno de 30 milhões de ações ao ano.
Apesar disso, o CNJ aponta que esta foi a primeira vez que o volume de processos baixados superou o patamar de 30 milhões de casos solucionados, 6,5% a mais que a demanda de processos novos. Foi, também, o ano de menor crescimento do estoque, com variação de 0,3%.
O principal fator de morosidade da Justiça são as execuções fiscais, segundo o levantamento. Em 2017, elas representaram 39% do total de casos pendentes, com congestionamento de 92%.
A diretora de Pesquisas Judiciárias do CNJ, Maria Tereza Sadek, destacou ainda que persiste um índice baixo de conciliação. “Não houve alteração em relação aos anos anteriores, como era de se esperar com o novo CPC”, afirmou na apresentação dos dados.
Conheça os planos do ministro Dias Toffoli para o Supremo e para o CNJ
Se depender do presidente eleito do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Dias Toffoli, o Judiciário vai deixar de ser um obstáculo. A duas semanas de assumir o comando da Justiça do país, ele planeja usar da força do cargo para contribuir para a harmonia entre os Poderes e para se colocar como uma liderança da magistratura.
“A ideia é destravar”, diz. Os planos são muitos. Por exemplo, levantar quais são as grandes obras de infraestrutura que estão paradas por decisão judicial. Ou discutir com lideranças políticas formas para dar efetividade à Justiça — uma das principais ideias é um projeto para estabelecer que condenados pelo júri sejam presos imediatamente e não possam recorrer em liberdade.
Com o Supremo, Toffoli afirma que não pretende ser um presidente, mas um coordenador. Na prática, isso significa ouvir os outros ministros sobre suas prioridades antes de fazer a pauta, em vez de esperar que eles peçam por determinado processo. E estabelecer quais processos serão julgados com mais antecedência e previsibilidade.
Para este ano, ele avisa que não pretende colocar em pauta nada “polarizante”. Portanto, ficarão pelo menos para 2019 casos como os embargos de declaração que pedem a modulação da proibição da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, ou os que pedem a definição do alcance e do cumprimento da declaração de constitucionalidade do Funrural para produtores rurais com empregados.
Ou ainda o mérito das ações que pedem a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado da condenação, exceto em casos de flagrante ou de medida cautelar. As já célebres ADCs sobre a execução antecipada da pena.
Internamente, o ministro dividiu sua assessoria de imprensa. O jornalista Adão Paulo Martins de Oliveira, ex-secretário de comunicação da Advocacia-Geral da União, trabalhará para a presidência e atenderá demandas relacionadas ao ministro Toffoli. A Secretaria de Comunicação ficará responsável pelo tribunal e pela instituição. Esse cargo deve ficar com o jornalista Marcio Aith, amigo de longa data do ministro.
A atual chefe de gabinete, Daiane Nogueira de Lira, vai para a Secretaria-Geral do Supremo cuidar da atividade-fim do tribunal. Isso envolve a pauta do Plenário, organizar a repercussão geral, as atas de julgamento, entre outras atividades. A chefia de gabinete, que cuidará da assessoria parlamentar, representação internacional e agenda do ministro, ficará com Sérgio Braune, hoje assessor. Eduardo Toledo continua na diretoria-geral do tribunal.
No CNJ, outra divisão interna importante: a secretaria-geral será dividida em duas. Uma para cuidar da atividade-fim do conselho, como os convênios, contratos, tecnologia etc., que ficará a cargo do desembargador Carlos von Adamek, do Tribunal de Justiça de São Paulo. A outra será dedicada à execução de projetos. Será comandada pelo juiz Richard Pae Kim, também de São Paulo.
Conheça alguns dos planos do ministro para sua gestão:
Infraestrutura
Toffoli pretende criar uma comissão no CNJ para identificar todas as grandes obras que estão paradas por decisão judicial. “O combate à corrupção é importante, mas as obras precisam ser concluídas”, afirma. “Quem perde com os atrasos e abandonos é o povo, que fica sem a ponte, sem a rodovia, sem a ferrovia.”
Ex-advogado-geral da União, o ministro conhece bem a realidade de obras que ficam paradas por causa de discussões burocráticas, ou de discussões sobre a licitude do contrato. Esses debates costumam ser interrompidos por liminares cujo principal efeito é engavetar os processos e embargar as obras.
De acordo com levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Brasil tem hoje 2,7 mil obras paradas. Desse total, 517 são de infraestrutura, normalmente interrompidas no início — segundo o estudo, a maioria das obras para antes de chegar a 25% da execução. E a área que mais sofre é a de saneamento básico, com 447 obras interrompidas. O levantamento não detalha se elas foram interrompidas por decisão judicial ou não.
“Às vezes a obra está 80% concluída, mas para porque começa uma discussão sobre a licitude do contrato. A discussão tem de ser feita, mas a obra tem que terminar”, afirma o ministro. “A Justiça existe para resolver o problema.”
Retomar a colegialidade
Toffoli quer resolver o problema das cautelares monocráticas em ações de controle concentrado. Uma de suas primeiras medidas para 2019 será pautar todas as ações de controle que já foram objeto de liminar monocrática, mas ainda não ratificadas pelo Plenário. Uma vez zerado o estoque, a ideia do ministro é sempre levar as ações do tipo que tiverem pedido de cautelar ao colegiado.
É uma crítica contra a qual o tribunal tem poucos argumentos. O artigo 10 da Lei das ADIs estabelece que medidas cautelares em ações de controle concentrado só podem ser tomadas “por decisão da maioria absoluta dos membros do tribunal”. Ainda assim, tramita na Câmara um projeto de leique quer proibir expressamente ministros do Supremo de suspender ou cassar leis por meio de decisões monocráticas.
Reação natural, dizem observadores, ao comportamento expansivo de alguns ministros. Só no primeiro semestre deste ano, o pesquisador José Carvalho identificou a imposição de cautelares monocráticas em oito ações diretas de inconstitucionalidade. Tornou-se prática frequente, escreveu, em artigo publicado na ConJur.
Repercussão geral
Toffoli pretende encampar a ideia do ministro Luís Roberto Barroso para os recursos com repercussão geral reconhecida. Basicamente, Barroso defende que o Supremo estabeleça um número fixo de repercussões gerais para reconhecer ao final de cada semestre. E assim que reconhecer a repercussão, escolher uma data de julgamento.
Os que não forem selecionados, defende Barroso, transitam em julgado, mas não produzem efeitos extensivos. Dessa forma, o Supremo consegue “se livrar” daquele recurso, mas não impedir que a tese venha a ser discutida em outro momento.
É que não há muito como fugir da constatação de que o Supremo reconheceu mais repercussões gerais do que tem condições de julgar. Entre 2007 e janeiro deste ano, havia reconhecido a repercussão de 661 casos, mas só julgou 359 deles. Segundo as contas do ministro Barroso, a corte hoje consegue julgar 35 recursos com repercussão geral por ano — se só julgasse isso, seriam necessários oito anos para dar conta do acervo que já está lá, sem receber nenhum processo novo, calculou o ministro em seu artigo Como Salvar o Sistema da Repercussão Geral, publicado em março em parceria com o juiz Frederico Montedonio.
Harmonia entre os Poderes
O artigo 2º da Constituição diz que os Poderes da União são “independentes e harmônicos entre si”. Mas Legislativo e Executivo passam por uma crise de legitimidade que dá ao Judiciário tamanho maior do que o planejado pelos constituintes, criando atritos institucionais.
A estratégia de Toffoli para enfrentar esse quadro é fazer reuniões mensais e públicas com o presidente da República e os presidentes da Câmara e do Senado, os quatro juntos. A intenção é discutir projetos e ideias e passar para a sociedade a ideia de harmonia, previsibilidade e respeito mútuo. “Isso é simbólico, significa investir em segurança jurídica, dizer que não conversamos só quando aparece um problema, mas para discutir o país também”, diz.
Uma dessas ideias é remodelar o teto do funcionalismo público e fazer com que o tribunal deixe de ser a referência salarial. As remunerações dos servidores são, por regra constitucional, porcentagens dos salários dos ministros. “É um sistema que pesa sobre os ombros do tribunal e da instituição”, diz Toffoli. A proposta é que se construa uma nova forma de limitar o salário dos servidores sem que o salário dos integrantes do Supremo sirva de referência e sem vinculações automáticas.
Outro projeto é acabar com penduricalhos como auxílio-moradia, auxílio-creche etc. e incorporar tudo isso ao salário. Até porque o parágrafo 4º do artigo 39 da Constituição estabelece que o salário do funcionalismo público deve ser pago em parcela única. E o Supremo já decidiu, no Recurso Extraordinário 609.381, que o teto do funcionalismo tem aplicação imediata e obrigatória. O recurso tinha repercussão geral reconhecia e foi relatado pelo ministro Teori Zavascki.
Cultura da magistratura
Toffoli espera receber o quanto antes estudo encomendado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) à PUC-Rio sobre o perfil da magistratura brasileira. Segundo ele, é importante investir na formação cultural dos juízes, e não apenas jurídica. Nem só da leitura de códigos esquematizados pode viver um magistrado, afirma o ministro.
Ele pretende criar um canal de troca de informações e ideias entre o CNJ e as escolas de magistratura para contribuir com a formação dos juízes, que têm ingressado na carreira cada vez mais jovens e menos vividos. A falta de uma formação mais ampla do ponto de vista humano e social foi identificada como uma causa de insegurança jurídica pelo ministro e por seus interlocutores — entre eles, o ministro Humberto Martins, próximo corregedor nacional, e o ministro João Otávio de Noronha, atual corregedor e presidente eleito do Superior Tribunal de Justiça.
Para o ministro Toffoli, a única forma de estancar o problema do desrespeito sistemático às decisões do Supremo pelas instâncias locais é investir na formação. “O juiz não pode imaginar que está resolvendo a briga dos vizinhos. O Judiciário define questões sociais e suas decisões influenciam na sociedade”, diz. “O juiz precisa entender que suas decisões têm consequência.”
Justiça penal
O ministro tem se preocupado com a influência que a falta de efetividade do sistema de justiça tem sobre a segurança pública. Durante a discussão de um Habeas Corpus em que o ex-presidente Lula argumentava a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, Toffoli foi claro no diagnóstico: o problema não é o sistema recursal, mas o primeiro grau. Segundo ele, só 8% dos júris são instalados depois que se conclui que houve crime contra a vida.
Uma das ideias é justamente estabelecer que o réu pode ser preso já depois da decisão do júri, com base no princípio da soberania do tribunal do júri. Seria voltar ao sistema anterior à Lei Fleury, uma alteração de 1973 no Código de Processo Penal que autorizou a réus primários com residência fixa a recorrer de condenações por homicídio em liberdade.
Toffoli também pretende usar o CNJ para estudar formas de dar proteção a vítimas de violência, especialmente crianças, e de violência doméstica. Segundo ele, há experiências de sucesso já transformadas em modelo pela Comissão de Direitos Humanos da União Europeia e que podem ser traduzidas para o Brasil. O que falta aqui, segundo o ministro, são políticas que olhem para as vítimas, e não só para punir quem comete crimes.
Tripé
“O juiz tem que ter transparência, eficiência e responsabilidade”, defende Toffoli. Para transformar o tripé em realidade, ele pretende usar o CNJ para comandar o investimento do Judiciário em tecnologia e se acostumar ao uso de inteligência artificial para ajudar na gestão.
Por “transparência”, Toffoli entende que a sociedade precisa ter acesso irrestrito a todos os processos judiciais em trâmite — exceto os sigilosos — sem grandes dificuldades. Até para mostrar eficiência e possibilitar a responsabilização, caso fique claro que o juiz ou tribunal não está resolvendo os problemas que lhe são postos a tempo.
Uma frente importante nesse passo são as execuções fiscais. Elas respondem por quase 40% de todo o acervo de processos do país e são de responsabilidade do Estado. Programas de computador podem agilizar tarefas burocráticas como levantamento de bens, rastreamento do endereço, conta bancária e outras tarefas que atrapalham o andamento processual.
Outro passo é consolidar o PJe como ferramenta de processo eletrônico e investir em interoperabilidade com os sistemas usados por outros tribunais. Com isso, acredita o ministro, os juízes deixarão de perder tempo com relatórios e informes de cumprimento de metas, porque a fiscalização será automática, em tempo real — e sempre acessível aos jurisdicionados.
Ler maisCandidatas a vice e a suplente devem receber cota, defende Luciana Lóssio
A decisão do Supremo Tribunal Federal que garantiu às candidatas 30% da verba do Fundo Partidário destinada à agremiação vale também quando a mulher for postulante a vice ou suplente. Essa é a opinião da advogada Luciana Lóssio, ex-ministra do Tribunal Superior Eleitoral.
No Seminário de Direito Eleitoral, que ocorreu nesta sexta-feira (24/8) no Instituto dos Advogados Brasileiros, no Rio de Janeiro, Luciana afirmou que a cota feminina pode ser empregada a candidaturas a vice devido à importância do cargo. Ela lembrou que, desde o fim da ditadura, três dos seis mandatos presidenciais (contando dois de Fernando Henrique Cardoso, dois de Lula e dois de Dilma Rousseff) foram terminados por vices – os de Tancredo Neves (José Sarney), Fernando Collor (Itamar Franco) e Dilma (Michel Temer).
A ex-ministra também avaliou que os 30% podem ser destinados a candidaturas ao Senado em que o cabeça da chapa seja homem, mas que tenha uma mulher como suplente. De acordo com a advogada, o percentual de primeiros-suplentes exercendo o cargo de senador é maior do que o percentual de mulheres eleitas para a Casa — há, no momento, 16 suplentes e 13 senadoras exercendo o mandato. Além disso, ela apontou que, nesta legislatura, 41 suplentes já assumiram o posto em algum momento.
Luciana Lóssio ainda disse ser favorável à aplicação da cota feminina a candidaturas a cargos majoritários — questão que será decidida pelo TSE. Porém, a mera reserva de recursos do Fundo Partidário não basta para aumentar a representação das mulheres na política, avaliou a ex-ministra. A seu ver, o cenário só irá mudar quando foram elevados os percentuais mínimos de aplicação de verba partidária e de propaganda nas campanhas femininas — atualmente, em 5% e 10% do total da agremiação, respectivamente.
Poder religioso
Por sua vez, o ministro do TSE Admar Gonzaga Neto defendeu a punição de candidatos por abuso do poder religioso, embora a prática não esteja prevista em lei. O grande problema de se fazer propaganda política em um templo é que essas entidades têm imunidade tributária. Portanto, o candidato que é promovido em um local do tipo está, no fundo, se beneficiando de verbas públicas, ressaltou o magistrado.
Fora que, em cerimônias religiosas, as pessoas ficam mais emocionalmente envolvidas e, portanto, suscetíveis a aceitar sugestões de padres, pastores e outros líderes — vistos como autoridades pelos fiéis, citou Gonzaga.
Ler maisTJ-RS aceita ação do Besc como caução e manda limpar nome de devedor
Um casal com dívida junto ao Banco do Brasil conseguiu uma decisão determinando que seus nomes sejam retirados do órgão de restrição ao crédito após oferecer como caução ações do extinto Banco do Estado de Santa Catarina (Besc), incorporado em 2008 pelo BB.
Após ter seu nome inscrito em órgão de restrição ao crédito devido a uma dívida de financiamento, o casal entrou com ação revisional alegando existência de abuso nas cláusulas contratuais. Em tutela de urgência, pediu que a cobrança da dívida fosse suspensa e que seus nomes fossem limpos. Para isso, ofereceu como caução ações preferenciais do Besc que, segundo os autores, possuem o valor de R$ 5 milhões. O pedido foi feito pelo escritório Guazelli Advocacia.
Em primeira instância, a tutela de urgência foi concedida pela juíza Amita Antonia Leão Barcellos Milleto, da 2ª Vara Cível de Capão da Canoa (RS). “Considerando a boa fé demonstrada pelos demandantes com a oferta de caução, de modo que a parte contrária não sofrerá prejuízos com o acolhimento da liminar pleiteada, tenho que merece guarida o pedido dos autores”, afirmou.
Inconformado, o Banco do Brasil agravou a liminar alegando que as ações ofertadas não prestam para servir de caução uma vez que o Besc está extinto e suas ações, desde 2008, não tem valor algum, ou, no mínimo, não possuem nenhuma liquidez.
Porém, a 17ª Câmara Cível do TJ-RS decidiu, por unanimidade, manter a decisão liminar. Segundo a relatora, desembargadora Liége Puricelli Pires, a liquidez ou não das ações é questão relativa ao mérito da demanda, e não há prejuízo algum ao Banco do Brasil em cancelar a inscrição do casal no cadastro restritivo de créditos. A multa diária em caso de descumprimento é de R$ 500, limitada a R$ 20 mil.
Clique aqui para ler o acórdão.
0129232-31.2018.8.21.7000
Policial que agride para obter informação comete tortura, define STJ
Para um ato ser considerado tortura, basta que o objetivo tenha sido obter uma informação da vítima, independentemente da intensidade do sofrimento causado à vítima. Com este entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça restabeleceu a sentença que condenou dois policiais militares do Pará por tortura qualificada.
De acordo com o processo, os policiais foram acusados de submeter três assaltantes a uma sequência de espancamentos, chutes, pontapés, uso de palmatória nas mãos, além de tapas, para que confessassem a participação no crime e dessem informações acerca do local onde se encontravam o celular, a carteira e o relógio roubados, além da faca utilizada.
A sentença condenou os dois policiais a quatro anos de reclusão, em regime inicial fechado, pelo crime tipificado no artigo 1º, inciso I, alínea “a”, combinado com o parágrafo 4º, inciso I, da Lei 9.455/97.
O Tribunal de Justiça do Pará reconheceu a violência física e o sofrimento causado às vítimas, porém entendeu que a conduta deveria ser classificada como delito de lesão corporal leve, e não como tortura, pois não houve provas de que a agressão teve caráter “martirizante” ou foi “reveladora de extrema crueldade e capaz de causar à vítima atroz sofrimento físico, verdadeiro suplício”.
Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, o tribunal paraense violou o artigo 1º, inciso I, alínea “a”, da lei que define o crime de tortura, “no momento em que desclassificou a conduta para o delito de lesões corporais leves, por julgar que o tipo penal em questão possui como elemento normativo a intensidade do sofrimento causado à vítima”.
De acordo com ele, “diversamente do previsto no tipo do inciso II do artigo 1º da Lei 9.455/97, definido pela doutrina como tortura-pena ou tortura-castigo, a qual requer intenso sofrimento físico ou mental, a tortura-prova, do inciso I, alínea ‘a’, não traz o tormento como requisito do sofrimento causado à vítima. Basta que a conduta haja sido praticada com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa e que haja causado sofrimento físico ou mental, independentemente de sua gravidade ou sua intensidade”.
O ministro observou que tanto o juiz de primeiro grau quanto o TJ-PA reconheceram que a atuação dos policiais causou sofrimento físico e mental às vítimas e se deu com a finalidade de obter a confissão sobre o local onde estavam os objetos roubados e a arma do crime. Diante disso, acompanhando de forma unânime o voto de Schietti, a 6ª Turma restabeleceu a condenação pelo crime de tortura qualificada, nos moldes fixados pela sentença, e determinou o início imediato do cumprimento da pena. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.580.470