Morre Otavio Frias Filho, pioneiro do novo jornalismo brasileiro.
Morreu na madrugada desta terça-feira (21/8) Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha de S.Paulo, aos 61 anos de idade. Vítima de câncer no pâncreas, descoberto há 11 meses, Otavio reagia bem ao tratamento, mas cedeu diante de complicações verificadas na semana passada.
Formado em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco (USP) e não em jornalismo, Otavio modernizou seu jornal e delineou um modelo que foi perseguido por quase toda a imprensa brasileira. Este site, por exemplo. Paralelamente, foi dramaturgo e ensaísta.
Otavio deixa a mulher, Fernanda Diamant — que dirige a revista literária Quatro Cinco Um — duas filhas, Miranda e Emília; o irmão Luiz, que dirige o Grupo Folha; Maria Cristina, editora da coluna Mercado Aberto; e Maria Helena, médica.
Ao assumir o comando da Folha, em 1984, aos 27 anos, Otavio encontrou forte resistências dos jornalistas de então. Ele comandou a elaboração de um Manual da Redação que batia de frente com as práticas de então. O guia impunha a busca de “jornalismo crítico, apartidário e pluralista”. Reduziu o subjetivismo dos redatores ao forçar textos descritivos e precisos. Adotou mecanismos de controle interno, como o controle do número de erros cometidos por profissional, instituiu o cargo de ombudsman e mesmo inquéritos para apurar notícias erradas.
Existiam dois Otavios. Um discreto, meio carrancudo, reservado e avesso à exposição de sua vida pessoal; outro vigoroso, desinibido, criativo e radical — traços presentes em seus textos, sejam editoriais, nas peças de teatro e ensaios.
Inicialmente, na década de 80, teve de enfrentar rebelião dos jornalistas da Folha, mas teve o apoio de seu pai (leia aqui a transcrição do debate). A velha guarda não admitia que alguém com a idade de Otavio, com pouca vivência na profissão pudesse lhe dizer como fazer jornalismo. E nasceu a geração dos apelidados “menudos”, jovens jornalistas também pouco experientes, que passaram a substituir os velhos profissionais em cargos-chave no jornal. Parecia impossível que desse certo. Mas deu.
Com um estado-maior formado originalmente por Caio Túlio Costa, Carlos Eduardo Lins da Silva, André Singer e Matinas Suzuki, Otavio começou por substituir jornalistas que, além do emprego no jornal, recebiam salários dos órgãos públicos que cobriam como setoristas (repórter encarregado de produzir notícias sobre um setor determinado).
Parecia ser uma cruzada moral. Não era, como explicou “Otavinho” (apelido que seus desafetos usavam para diminuí-lo, o que o irritava). O problema, explicou em um depoimento em 1989, era estrutural. Analogia que, mais de trinta anos depois, ele viria a repetir para analisar o país. Apesar de comandar jornal alinhado com os demais na acusação sistemática contra escândalos, ele não achava que o problema central do Brasil seja a corrupção. “A desgraça é a ineficiência”, disse ele.
Leia o depoimento de Otavio Frias Filho sobre o problema da corrupção no jornalismo, em 2 de fevereiro de 1989:
A diferença entre o jornalismo, o jornal de Brasília e o jornalista e jornal de São Paulo é estrutural. São Paulo tem um mercado de característica capitalista. Em Brasília não há mercado. Em lugar disso há o governo federal. As distorções decorrem daí. Onde o mercado é fraco, o estado ocupa o espaço. E o jornalista é vulnerável. Acaba ocorrendo uma comunhão de interesses, do ponto de vista dos hábitos e uma afinidade pessoal. E isso influencia o produto final, ou seja, o noticiário, que tende a sair de Brasília contaminado de um viés oficialista.
Imagino que houve uma imbricação entre os jornalistas e os políticos do Congresso, primeiro por uma razão política — a oposição ao regime militar — depois por questões de comodidade com a “Nova República” uniu-se o útil ao agradável.
Os jornalistas são mal remunerados e mal preparados para a profissão. Quando o jornalista busca emprego junto a uma fonte que ele deve — em tese — fiscalizar, cria-se um ciclo vicioso. O natural é que se pague menos a um profissional que não goze de confiabilidade técnica.
(Sobre a lei do silêncio que cobre fatos em que jornalistas estejam envolvidos): “Há um medo excessivo da reação da categoria. Os maiores exemplos de covardia moral não se verificam pelo medo dos poderosos, mas diante da opinião média da categoria. A FSP foi o primeiro jornal a tocar nesse tema. Hoje, outros jornais adotam o mesmo comportamento.
Há um movimento em toda a imprensa em direção ao profissionalismo. Uma preocupação com o desenvolvimento técnico, a objetividade. As empresas jornalísticas se voltam para o mercado e abandonam o obsoleto. A FSP teve uma atitude pioneira nisso. Outros jornais estão procedendo a uma série de providências ou métodos que a FSP adotou.
Agora, não há dúvida de que, onde o mercado é fraco, o jornalista acaba apelando. Por isso a imprensa do Piauí é pior que a de Minas, a de Minas pior que a de São Paulo e a de São Paulo pior que a dos Estados Unidos. O pano de fundo é o mercado ser mais ou menos desenvolvido.
Há casos em que mesmo quem não leva vantagem financeira protege a fonte. E que há muitas moedas nesse mercado. E a contabilidade do prestígio é tão valorizada quanto a contabilidade do dinheiro, pela dimensão pública dessa área.
Aqui em São Paulo, nos grandes jornais — no circuito Abril, Estadão, Folha eu considero o padrão de moralidade dos jornalistas invejável. Muito bom mesmo.
A FSP prescinde de favores. Não tem qualquer tipo de acordo ou negócio com ninguém, governo ou empresas. O Estadão, eu concordo com o Mino, poupa o ACM de críticas por causa das listas telefônicas que publica. A rodoviária, enquanto pertenceu à Folha era privada — um empreendimento. Agora, a rodoviária foi fechada há seis anos. Foi vendida para um grupo coreano e se tornou um shopping popular.
Acho que se o Mahatma Gandhi fosse dono de um jornal do Nordeste ou ele vendia as posições do jornal ou sucumbiria, ao passo que se o Al Capone tivesse um jornal em NY ele não precisaria fazer acordos com ninguém. Em suma, não é uma questão moral, mas estrutural. E questão de o mercado ter um desenvolvimento menor ou maior. Mas a categoria vê tudo de um ponto de vista moral. Ela é muito moralista.
A imprensa brasileira são duas. A dos quatro grandes jornais e a Veja — que é um segmento relativamente autônomo (e, no caso da Folha, radicalmente autônoma). Todo o restante configura o segundo bloco, subordinado ao poder do estado, à mercê de todo tipo de concessões. O jornalista que tem dois empregos em SP tem muito mais responsabilidade e culpa, que o jornalista de Brasília.
Depois que a sucursal de Brasília da Folha expeliu seus jornalistas chapas-brancas, a diferença no produto final foi muito pequena. Isso porque essa questão e apenas uma componente do quadro. No global, o despreparo profissional é muito grande. Desde a formação escolar precária, à irresponsabilidade na publicação de notícias, a falta de zelo, o pré-julgamento etc. Mais insistente que a influência do jornalista chapa-branca é o problema político. A maioria acha que está a serviço de uma causa — ou a revolução social, a liberdade, o avanço do proletariado e tudo o mais — isso acaba resultando num mau jornalismo porque é um equívoco. O jornalismo, o jornalista, está a serviço do público. E a tendência acaba sendo a de esquecer esse público, que é a classe média. A classe média que é quem paga o jornal. Mas não. O repórter trabalha com uma quimera, uma ilusão, um submarxismo que se difunde na faculdade, uma postura romântica.
Passei um dia no Guardian de Londres. Lá eles não têm manual de redação, pauta nem toda essa papelada, essa burocracia, tanto controle, estatística, avaliação. Por que não tem? porque não precisa ter. Esse processo que estamos vivendo aqui hoje, eles viveram há cem anos. Você não precisa dizer ao jornalista de lá que é preciso sempre ouvir todas as partes envolvidas em cada caso, não precisa ensinar ortografia a quem chega numa redação para trabalhar. O Brasil não vai chegar a esse ponto tão rápido quanto se imagina. Aqui, por exemplo, nós demos um salto artificial. Difícil fazer as pessoas compreenderem que esse processo é provisório, mas acho que já atingimos 60% dos nossos objetivos. Avançamos na qualidade técnica. Hoje a informação está mais voltada para o mercado, para o leitor.
O papel da imprensa é dar acesso ao leitor às informações que lhe dizem respeito. Evitar que assuntos públicos fiquem no sigilo. E acho que a meta, o objetivo dessa imprensa deve ser o de melhorar tecnicamente, investir no seu próprio desenvolvimento.
(Quanto á responsabilidade do governo na cooptação de jornalistas) “Não adianta iniciar uma cruzada moral, uma catequese. Tem que se criar condições objetivas para estabelecer uma relação profissional. É natural que cada um queira adotar o caminho mais rápido e fácil para atingir seus objetivos. Instalada uma mentalidade de mercado vai ser mais difícil. Enquanto for factível o senador Humberto Lucena fazer o que faz, ele fará. No momento em que os jornalistas forem bem pagos e a imprensa for autônoma, os Humberto Lucena irão desaparecer normalmente.
No fundo, o que eu digo é muito parecido com o que o Gorbatchóv fala. Quanto ao sindicalismo, é inevitável que ele caminhe para a modernização também. No momento, ele está muito preso a pequenos interesses. Pouco radical e muito conservador, sofre de uma certa miopia. Só vê a curto prazo. Os líderes sindicais jogam mais com o medo de perder o voto dos jornalistas na próxima eleição do que com o desenvolvimento da profissão. Se tomassem atitudes mais radicais, estariam contribuindo para isso.
Ler maisMinistro do STJ dispensa inscrição de defensores públicos de São Paulo na OAB
O ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, autorizou os defensores públicos de São Paulo a cancelar suas inscrições na seccional local da OAB. Em decisão do dia 16 de agosto publicada nesta segunda-feira (20/8), o ministro acolheu pedido da Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep).
Segundo o ministro, o STJ já firmou o entendimento de que não é necessária a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil para que os defensores públicos exerçam suas atividades.
“Ficou esclarecido que a carreira [Defensoria Pública] está sujeita a regime próprio e a estatutos específicos, submetendo-se à fiscalização disciplinar por órgãos próprios, e não pela OAB”, afirmou o ministro na decisão da última quinta-feira (16/8).
A Associação interpôs o recurso contra o acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que apontava pela necessidade de os defensores públicos possuírem inscrição dos quadros da OAB.
A entidade alegou no STJ que a inscrição, no entanto, não é exigência para o exercício da função, porque a Lei Complementar 80/1994, que organiza a defensoria pública, “estabelece que a capacidade postulatória do defensor público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo”.
Clique aqui para ler a decisão.
Recurso Especial 1.670.310.
Beneficiário de Justiça gratuita deve pagar custas se falta a audiência sem justificativa
Trabalhador que ingressa com ação e falta a audiência sem justificativa deve pagar custas mesmo em caso de Justiça gratuita. A decisão é da 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ao manter sentença que condenou o autor a pagar R$ 268 de custas processuais por não comparecer a audiência tampouco apresentar justificativa para sua ausência.
Após ser condenado em primeira instância, o homem apresentou recurso alegando que não poderia ser condenado a pagar as custas pois era beneficiário da Justiça gratuita. Além disso, alegou violação ao princípio do acesso à Justiça.
A 17ª Turma do TRT-2, no entanto, entendeu estar correta a sentença. Em seu voto, a relatora, desembargadora Maria de Lourdes Antonio, explicou que, quando o trabalhador ingressou com a ação, já estava em vigor a nova legislação trabalhista (Lei 13.467/2017).
“Como a norma estava em plena vigência quando do ajuizamento da ação, o reclamante estava ciente de que o não comparecimento injustificado teria por consequência a condenação em custas, ainda que obtivesse o benefício da justiça gratuita. Não tendo comparecido na audiência e não tendo apresentado qualquer justificativa, ele deve se responsável pelas suas atitudes”, afirmou.
A desembargadora também afastou o argumento de que a decisão violou o princípio do acesso à Justiça, uma vez que a lei não retira o direito à gratuidade da Justiça integral, apenas afasta o direito à isenção do pagamento das custas processuais quando o reclamante dá causa ao arquivamento do processo, como ocorrido neste caso.
“O disposto no artigo 844, § 2º, da CLT não é inconstitucional, pois apenas pretende desestimular a litigância descompromissada, trazendo maior responsabilidade processual aos reclamantes na Justiça do Trabalho”, disse.
Na decisão, Maria de Lourdes disse ainda que o autor da ação não pode deixar de comparecer a audiência sem qualquer justificativa e esperar que seu ato não lhe acarrete qualquer consequência jurídica porque tem direito à gratuidade da Justiça.
“O autor ocupou precioso tempo da pauta do juízo; ocupou tempo da reclamada, que deveria estar presente na audiência sob pena de revelia; tempo do advogado da reclamada, não apenas por ter de estar presente no ato, mas também por ter de elaborar a defesa. Quiçá também tenha ocupado tempo de testemunhas que deixaram de trabalhar para comparecer à audiência designada”, explicou.
O trabalhador já apresentou recurso de revista contra a decisão do TRT-2, ainda não julgado. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-2.
Clique aqui para ler o acórdão.
1000091-23.2018.5.02.0435
TJ-PR reafirma direito da Defensoria de atuar em caso como custos vulnerabilis
A Defensoria Pública pode participar, na qualidade de custos vulnerabilis de casos, que envolvam a promoção dos direitos humanos, independentemente se há já advogados públicos ou particulares no processo. Esse é o entendimento da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, que não aceitou pedido do Porto de Paranaguá para a Defensoria fosse retirada do caso.
O processo envolve a desapropriação de terras no entorno do porto. A Justiça determinou a desapropriação, com a condição de que a administradora do porto arcasse com os custos de alocar as famílias em outros locais. Porém, algumas se recusaram a sair, e casas que estavam vazias foram invadidas. A empresa foi à Justiça e obteve uma ordem de desapropriação. Neste momento, a Defensoria Pública do Paraná pediu para fazer parte do processo em favor das famílias.
O Porto de Paranaguá entrou na Justiça para que a Defensoria fosse afastada do caso. A administradora alegou que as partes já estavam representadas, que não foi notificada da entrada da Defensoria no caso e que o processo não está no escopo de competências da entidade.
O relator, desembargador Lauri Caetano da Silva, ressaltou que gira em torno do caso questões ligadas à dignidade e à moradia de população carente e marginalizada, localizada em área de risco e que por isso a possibilidade da participação da Defensoria é garantida.
“Registra-se que, em tais termos, o ingresso da agravada na lide não traz qualquer prejuízo à pretensão da agravante, e sim o contrário, porquanto sua atuação não está voltada unicamente à eventual permanência dos requeridos no imóvel, e sim à ‘promoção dos direitos humanos e a defesa dos necessitados’, visando garantir, nesse sentido, que a dignidade e o direito à moradia de tais pessoas sejam observadas não só na realização das medidas possessórias, mas também no momento posterior a tais atos, contribuindo para a efetividade da prestação da tutela jurisdicional para a promoção da paz social”, disse o desembargador.
O julgador ressaltou que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal já legitimou o ingresso das Defensorias Públicas estaduais como custos vulnerabilis em demandas que envolvam interesses de necessitados ou hipossuficientes, conforme entendimento adotado no Habeas Corpus 143.641.
Ler maisBeneficiário de Justiça gratuita deve pagar custas se falta a audiência sem justificativa
Trabalhador que ingressa com ação e falta a audiência sem justificativa deve pagar custas mesmo em caso de Justiça gratuita. A decisão é da 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ao manter sentença que condenou o autor a pagar R$ 268 de custas processuais por não comparecer a audiência tampouco apresentar justificativa para sua ausência.
Após ser condenado em primeira instância, o homem apresentou recurso alegando que não poderia ser condenado a pagar as custas pois era beneficiário da Justiça gratuita. Além disso, alegou violação ao princípio do acesso à Justiça.
A 17ª Turma do TRT-2, no entanto, entendeu estar correta a sentença. Em seu voto, a relatora, desembargadora Maria de Lourdes Antonio, explicou que, quando o trabalhador ingressou com a ação, já estava em vigor a nova legislação trabalhista (Lei 13.467/2017).
“Como a norma estava em plena vigência quando do ajuizamento da ação, o reclamante estava ciente de que o não comparecimento injustificado teria por consequência a condenação em custas, ainda que obtivesse o benefício da justiça gratuita. Não tendo comparecido na audiência e não tendo apresentado qualquer justificativa, ele deve se responsável pelas suas atitudes”, afirmou.
A desembargadora também afastou o argumento de que a decisão violou o princípio do acesso à Justiça, uma vez que a lei não retira o direito à gratuidade da Justiça integral, apenas afasta o direito à isenção do pagamento das custas processuais quando o reclamante dá causa ao arquivamento do processo, como ocorrido neste caso.
“O disposto no artigo 844, § 2º, da CLT não é inconstitucional, pois apenas pretende desestimular a litigância descompromissada, trazendo maior responsabilidade processual aos reclamantes na Justiça do Trabalho”, disse.
Na decisão, Maria de Lourdes disse ainda que o autor da ação não pode deixar de comparecer a audiência sem qualquer justificativa e esperar que seu ato não lhe acarrete qualquer consequência jurídica porque tem direito à gratuidade da Justiça.
“O autor ocupou precioso tempo da pauta do juízo; ocupou tempo da reclamada, que deveria estar presente na audiência sob pena de revelia; tempo do advogado da reclamada, não apenas por ter de estar presente no ato, mas também por ter de elaborar a defesa. Quiçá também tenha ocupado tempo de testemunhas que deixaram de trabalhar para comparecer à audiência designada”, explicou.
O trabalhador já apresentou recurso de revista contra a decisão do TRT-2, ainda não julgado. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-2.
Clique aqui para ler o acórdão.
1000091-23.2018.5.02.0435
“Não importa existir liberdade de imprensa se a sociedade não confia nos jornais”
Em 1962, o jornal norte-americano The New York Times foi condenado a indenizar o comissário de polícia do Alabama em US$ 500 mil — uma bela fortuna para a época. O jornal havia publicado um anúncio de dez páginas comprado por um grupo de apoio a Martin Luther King Jr, e o texto criticava a polícia do Alabama, que havia prendido o ativista três vezes sem justificativa legal — o texto falava em sete prisões.
Poderia ser uma história singela sobre um processo judicial de outro país. Mas foi a última vez que o New York Times sofreu uma derrota num processo por difamação. Dois anos depois, a Suprema Corte dos Estados Unidos reformou a decisão e estabeleceu um parâmetro importante para a imprensa do país: em ações contra a imprensa, políticos e pessoas públicas é que devem provar que o jornal agiu com a intensão deliberada de provocar danos.
A decisão desencorajou quem desejasse usar processos judiciais como forma de intimidação, ou para ganhar dinheiro, conta David McCraw, vice-presidente jurídico do New York Times. Na época, segundo reportagem da revista Washington Lawyer, havia cerca de US$ 300 milhões em discussão em processos por difamação contra jornais. Hoje, a legislação do país está inteiramente estruturada em torno da Primeira Emenda à Constituição, que proíbe qualquer restrição à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, comenta o advogado, em entrevista exclusiva à ConJur.
Os resultados são vistos até hoje: entre 2010 e 2017, o jornal respondeu a 11 processos por difamação — nos EUA não existem crimes contra a honra e todos os casos ligados à liberdade de expressão são enquadrados em calúnia ou difamação, sempre cíveis. São dados de um país que considera a liberdade de expressão um valor moral, e não mais um direito constitucional.
“Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados por difamação”, diz McCraw. Segundo pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, em 2016, os veículos de comunicação brasileiros respondiam a 2,4 mil processos — só a ConJur, que acaba de completar 21 anos, tinha 31, quase o triplo do Times, jornal fundado em 1851.
McCraw explica que, ao contrário do que acontece na maioria dos países da Europa (e no Brasil), nos EUA os direitos de personalidade não são constitucionais. Portanto, o juiz não deve fazer nenhum tipo de valoração entre a liberdade de expressão e a privacidade ou “boa fama”, como diz o Código Civil brasileiro.
Por isso não estão entre as preocupações do advogado do maior jornal do mundo mudanças legislativas que restrinjam o trabalho do Times. “A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei”, afirma.
David McCraw passou a semana no Brasil. Esteve em São Paulo a convite da FGV Direito SP para falar sobre fake news, liberdade de imprensa e democracia. Além de advogado, McCraw é professor da Universidade de Nova York (NYU).
Leia a entrevista:
ConJur — Como se defende o maior jornal do mundo?
David McCraw — A lei nos EUA está de tal forma do lado das publicações que difamação não é uma preocupação como em outros lugares. Temos poucos casos de difamação. E, com o tempo, temos tido menos. Tivemos um pequeno aumento, mas, na maior parte, difamação não é comum nos EUA. Muito do que eu faço é focado no acesso à informação e a ajudar jornalistas a conseguir informações. Seja fazendo lobby com uma agência, seja ajuizando processos sob a Lei da Liberdade de Informação [Freedom of Information Act – Foia, em inglês]. Da mesma forma, estou profundamente envolvido com a nossa segurança internacional, garantindo que nossos jornalistas estejam seguros em zonas de conflito. Há outras coisas que surgem às vezes, como questões de direitos autorais, mas muito do que eu faço é trabalhar com nossos jornalistas, garantindo que eles terão acesso à informação e tentando evitar qualquer possível ação judicial que possa decorrer disso.
ConJur — Então não há muito de trabalho de defesa.
David McCraw — Eu faria a distinção entre “formal” e “informalmente”. Obviamente, passamos muito tempo falando de como uma reclamação informal não acabe se tornando uma ação por difamação ou um processo judicial. Isso é uma parte importante. Também passamos muito tempo antes da publicação falando com advogados, preocupados com o que a reportagem dirá. Esse tipo de defesa acontece o tempo todo. Litígio formal, nem tanto. Todo o resto é a parte maior do que fazemos.
ConJur — Os jornais sofrem com essas reclamações informais de difamação?
David McCraw — Não. A lei mudou de uma forma tão radical que difamação não é uma preocupação tão grande quanto era antigamente. Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados. O New York Timesnão perde uma ação de difamação há, pelo menos, 60 anos. E o jornal não faz acordos financeiros. Se alguém nos processa e quer uma retratação ou correção, nós fazemos.
ConJur — Por que não?
David McCraw — Muitas vezes, advogados com um caso fraco abrem processos só para ver se conseguem alguma coisa num acordo. Mas acreditamos que afastamos esse tipo de ação com essa postura de não fazer acordos. Pesquisamos de onde veio essa política e descobrimos uma carta de 1922 em que um editor escreveu para um advogado que tinha feito um acordo num caso para dizer “não faça isso de novo!”. Isso é muito debatido internamente. Houve um caso em que gastamos US$ 700 mil para a defesa, e a outra parte disse que aceitaria US$ 25 mil num acordo. Mas consideramos importante continuar com o processo porque era importante marcar nossa posição, criar um limite e defender nosso jornalismo.
ConJur — A quantas ações o jornal responde?
David McCraw — Contamos recentemente: entre 2010 e 2017, respondemos a 11 ações por difamação. Em oito anos, 11 ações.
ConJur — No mundo inteiro?
David McCraw — Houve uma época, uns dez anos atrás, em que chegamos a responder a sete ou oito ações internacionais por difamação, na China, na Alemanha, na Indonésia, entre outros. Chegamos a nos preocupar com ter que lidar com processos internacionais, já que a lei é tão diferente em outros países e tão favorável aos requerentes. Mas isso nunca aconteceu, a tendência não continuou.
ConJur — Tem explicação?
David McCraw — Em parte porque o Congresso aprovou uma lei, em 2011 ou 2012, que impede alguém que tenha ganhado uma ação fora dos EUA de executar a decisão. Então a pessoa não pode ir aos EUA retirar o dinheiro, fazer a cobrança. Uso muito isso em palestras: a lei foi aprovada por unanimidade, por todos os democratas e todos os republicanos, para proteger a imprensa e a indústria. Então é irônico que tenhamos chegado aonde chegamos, com a imprensa alvo de tantas críticas.
ConJur — O que motivou essa lei? Havia muitas ações contra jornais?
David McCraw — O que acontecia era que pessoas acusadas de financiar o terrorismo, de serem oligarcas russos, enfim, estavam indo para Londres, processando jornais americanos e ganhando casos importantes. E o Congresso ficou convencido de que essa era uma maneira que aqueles que financiavam terrorismo e crime internacional tinham encontrado para silenciar o jornalismo americano. E passaram essa lei. Ela diz que, se um autor ganhar numa jurisdição estrangeira, a decisão só pode ser executada nos EUA se o país do autor tiver os mesmos padrões de liberdade de expressão e de imprensa que os Estados Unidos. Os ingleses se ofenderam bastante, porque a mensagem foi que seu sistema judicial não estava à altura do nosso. Mas desde então o sistema deles foi reformado para garantir mais proteção aos jornais.
ConJur — E de que forma as leis nos EUA ficaram mais favoráveis à imprensa?
David McCraw — Se uma figura pública, uma celebridade, uma autoridade eleita, um astro, qualquer pessoa proeminente quiser ganhar uma ação de difamação nos Estados Unidos, ela tem que provar que a história é falsa e que houve malícia, ou intenção deliberada de causar prejuízos ao autor, por parte do editor, e deve provar o chamado “imprudente descaso com a verdade”. Ambos os conceitos são importantes, porque estabelecem que o ônus da prova não é do jornal. Diferentemente do que acontece em muitos países, o jornal não tem de provar que a história é verdadeira — o autor é que tem de provar que a história é falsa. E mesmo que ele consiga, o jornal tem a defesa de alegar que o editor acreditou que a história fosse verdadeira. E se ele acreditou, não importa que a notícia estivesse errada. Tudo isso torna muito difícil que os jornais percam. E a legislação sobre o assunto é assim há mais de 50 anos.
ConJur — Isso vale para “pessoas normais” também?
David McCraw — Há outras proteções estabelecidas. Indivíduos privados têm um ônus menor, é mais fácil para eles. Quando estamos revendo uma história antes da publicação, focamos nos personagens menores da história, os personagens incidentais da reportagem, porque eles tendem a ser os que processam, e o ônus deles é menor.
ConJur — A reputação do jornal pesa nessas horas?
David McCraw — Quero fazer uma distinção entre os padrões que estabelecemos internamente para nós mesmos e as defesas que nós faríamos se fôssemos processados.
Internamente, não nos importamos com o padrão jurídico, queremos é estar certos. Não olhamos para uma história e pensamos “isso realmente parece errado, mas acreditamos que está certo, então vamos publicar”. Queremos ter certeza de que estamos certos. Então somos muito cuidadosos com reputações e com a nossa reputação, tendo certeza de que vamos reportar o que aconteceu e, se cometermos um erro, vamos corrigi-los. Esse é o padrão ético que nós estabelecemos como jornal.
Se algo der errado e formos processados, vamos argumentar o padrão legal de que acreditamos que a história fosse verdadeira. Quando é sobre uma figura pública, esta é a nossa responsabilidade: demonstrar que acreditávamos que a história era de fato verdadeira. E isso milita a nosso favor, porque se eu, como advogado, ponho pressão num jornalista para confirmar fatos, voltar e fazer outra entrevista, isso é evidência de que nos importamos com a verdade. Mesmo se errarmos, nosso comportamento mostra que agimos de boa-fé, que realmente acreditamos que aquilo fosse verdade.
ConJur — Complicada a defesa de quem está do outro lado, não? Quando o New York Times comete um erro, ele se torna verdade.
David McCraw — Isso era uma preocupação maior antes da internet, e acredito que a internet seja parte da razão pela qual o número de ações por difamação caiu. Outra parte tem sido a lei, claro. Mas creio que as pessoas sentem que, se elas foram injustiçadas por uma reportagem, se as suas reputações forem maculadas, a história for falsa, elas podem levar sua própria versão dos fatos a público, pela internet. A voz do New York Timesnão é mais tão única e potente quanto era. Costumava ser assim mesmo, se o Times dissesse algo, não havia voz que competisse, ou as vozes competindo eram menores. Agora há todas essas vozes competindo por aí. E vejo isso como uma das razões para o sucesso de Donald Trump.
ConJur — Como assim?
David McCraw — Se ele não gosta da nossa reportagem, ele não precisa nos processar ou pedir uma correção. Ele vai para o Twitter e dá a versão dele. Pode não ser uma versão verdadeira, mas ele não sente que precisa nos processar ou exigir uma correção. Aliás, essa é uma terceira coisa importante: é tão mais fácil hoje consertar uma história! Se algo sai errado de manhã, à tarde já está corrigido na versão on-line. Antes, se algo saísse errado, uma pessoa que comprasse o jornal leria aquela informação errada para sempre. É quase impensável que qualquer pessoa que lesse o jornal descobrisse que publicamos uma correção em outra edição uma semana depois, quando o erro fosse descoberto. Agora eles podem ver que corrigimos a história, o que é uma evolução muito positiva.
ConJur — Como o jornal lida com o erro?
David McCraw — Outra coisa que fizemos para sermos responsáveis foi criar centros on-line para os leitores. Esses centros permitem que pessoas escrevam para o jornal e tenham editores explicando por que fizeram algo, ou por que acharam que algo era justo. Isso abriu a instituição e foi importante. As pessoas podem ver que nos importamos com a verdade, podem entender melhor como fazemos as coisas. Muitas vezes as histórias são sobre como fazemos a cobertura e como o jornalismo funciona. Outras vezes alguém diz “essa história parece injusta”, ou alguém dirá “aquela ilustração parece tendenciosa”, e os editores dão retorno direto para os leitores. Isso ajuda. Também fizemos algo extraordinário no ano passado: abrimos a redação do jornal para a filmagem de um documentário, em quatro partes, para o canal Showtime. Mais uma vez, isso ajuda as pessoas a ver como repórteres trabalham. Alguns dizem que o programa só mostrou um monte de gente datilografando, mas enfim.
ConJur — Essa proteção à imprensa funciona da mesma forma em casos que envolvem segurança nacional?
David McCraw — Esses casos são interessantes. A Lei de Espionagem está em vigor há 101 anos e em 101 anos nenhuma publicação foi processada com base nela. É uma lei claramente feita para pessoas como Edward Snowden, que era um consultor do governo. Claramente se aplica a servidores públicos. Nunca houve litígio sobre se essa lei se aplica a jornais que divulgam essas informações. Está na letra da lei “divulgação sem autorização”, mas nós alegaríamos que a Primeira Emenda protege nosso direito de publicação. O governo tem vastos poderes de proteger segredos, mas, quando eles vazam, a imprensa tem vastos poderes de publicar segredos. Obviamente levamos muito a sério quando recebemos informações confidenciais — nosso protocolo normal é sempre perguntar ao governo sobre questões confidenciais que vamos publicar. Não damos poder de veto, mas procuramos saber quais seriam as preocupações deles, porque é difícil saber quais danos a divulgação desse tipo de informação pode causar. O presidente Trump tem tuitado bastante sobre como é ruim a divulgação dessas notícias, mas eu acho que isso torna o país mais forte, cria uma janela para uma parte muito importante da nossa política.
ConJur — Pelo que se divulga sobre essas reportagens, a pressão do governo sobre o jornal costuma ser bastante pesada. Quando o Times revelou que a NSA estava usando suas ferramentas para espionar americanos dentro dos EUA, por exemplo, o governo alegou que, se a reportagem fosse publicada, um dos principais programas de combate ao terrorismo doméstico acabaria. Como uma entidade privada como um jornal pode tomar uma decisão desse tamanho?
David McCraw — Um jornal nunca tem informações suficientes. Nunca sabemos o futuro e o que acontecerá quando publicarmos as nossas informações. Mas parte do processo é tentar entender se, na nossa visão, um programa é ilegal e se é algo que o público deveria saber, porque o governo está tomando decisões políticas que são muito importantes. Os repórteres recebem muito feedback de suas fontes dentro do governo, o que nos ajuda a tomar essas decisões difíceis.
Cobrindo a primeira história sobre a vigilância da NSA, em 2004 e 2005, uma das coisas que convenceu os editores é que sabíamos que pessoas no Departamento de Justiça achavam que o programa era ilegal. Isso, para nós, sugeria que, se no governo havia perguntas e preocupação sobre a base legal do programa, isso era algo que as pessoas deveriam saber.
Isso se aplica à divulgação dos documentos de Snowden. Não fomos os primeiros, o Washington Post e o Guardian publicaram a primeira leva, nós estávamos na segunda. Mas o interessante foi que o ex-presidente Obama, no final de seu mandato, disse que, primeiro, Snowden deveria voltar e ser julgado (isso não me surpreendeu) e, depois, que a divulgação deveria começar um debate sobre quanta publicidade queremos e quanta segurança queremos. E ele disse que há poucos países no mundo onde esse debate é possível, onde essa informação poderia ter sido divulgada, o que demonstra a força do país. Esse discurso foi muito importante.
ConJur — Existe proteção para o sigilo da fonte?
David McCraw — A área de fontes confidenciais é muito difícil. A lei do Estados Unidos é desfavorável à imprensa e pouco clara. Na maioria dos estados, há proteção na lei para manter uma fonte secreta. Se alguém fala com um de nossos repórteres e diz “eu não quero ser identificado”, podemos garantir esse direito num tribunal estadual, e no estado de Nova York isso é um direito absoluto: se alguém, um investigador ou parte num litígio, quer saber quem foi nossa fonte, podemos dizer que a lei nos protege e não sou obrigado a dizer. E isso funciona.
ConJur — Na Justiça Federal não é assim?
David McCraw — Nos tribunais federais, esse não é o caso. Há divergências entre as cortes sobre se há ou não proteção. Num caso famoso, um ex-repórter do New York Times chamado Jim Risen recebeu a ordem de revelar suas fontes. Ele cobriu uma história sobre um programa da CIA que deu errado, e o governo estava processando um agente da CIA dizendo que ele havia vazado a informação. Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte. O caso durou anos e finalmente uma corte de apelação decidiu que não existe direito de um repórter preservar o segredo da identidade de uma fonte num caso criminal, uma decisão muito controversa e da qual discordamos. Interessante foi que, ainda assim, Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte e finalmente os promotores simplesmente desistiram.
ConJur — O que aconteceu?
David McCraw — O governo processou o agente da CIA e ganhou, provando o nosso argumento inicial de que eles não precisavam que Jim revelasse a identidade da sua fonte. Mas a lei é incerta. É difícil para os repórteres, porque eles têm que prometer confidencialidade. Se um repórter do New York Times está fazendo uma reportagem e diz para uma fonte “eu protejo sua identidade” e, depois da publicação, há um litígio estadual, o repórter jamais terá que revelar sua fonte. Mas se o litígio for na esfera federal, aí ninguém sabe. Ninguém pode prever na hora qual jurisdição estará envolvida. Mas repórteres nos EUA algumas vezes preferem ir para a cadeia a revelar suas fontes.
ConJur — O que acha do Patriot Act [lei que dispensa autorização judicial para interceptações de comunicações em investigações por terrorismo]?
David McCraw — Com o Patriot Act e outros que o seguiram, nossa principal preocupação como uma organização de notícias é o direito do governo de conseguir de forma secreta informações sobre pessoas através de provedores de internet ou serviços telefônicos. Há mecanismos na lei que permitem ao governo, durante uma investigação de segurança nacional, ir ao Google ou à Microsoft ou empresas de telefonia e conseguir essas informações. Isso nos preocupa, claro. Achamos, embora seja difícil ter certeza, que esse poder não foi usado muito frequentemente, mas, quando ficamos sabendo de casos, isso nos preocupa muito. Houve alguns casos durante a administração Obama, quando e-mails e ligações telefônicas de repórteres (um repórter da Fox News e um grupo de repórteres da Associated Press) foram obtidas de forma sigilosa. Como resultado disso, fomos ao Departamento de Justiça e pedimos a eles que reforçassem suas regras internas sobre quando o governo pode fazer coisas assim para pegar informações de jornalistas. E isso foi um sucesso, eles reforçaram as regras.
As regras internas são meio complicadas, mas essencialmente elas dizem que agentes governamentais investigando crimes podem pegar informações sobre jornalistas como último recurso. Os agentes ou promotores têm que provar ao procurador-geral que não há nenhuma outra forma de conseguir essa informação. E as regras funcionam. Obviamente, às vezes elas falham, como vimos em alguns casos. Mas, em geral, elas são uma restrição importante contra a ação governamental. A razão que sabemos que elas funcionam é que a administração Trump quer mudá-las para tornar mais fácil.
ConJur — A administração Trump mudou o relacionamento do jornal com o governo?
David McCraw — Não posso falar pelos jornalistas, não sei se ficou mais fácil ou mais difícil. Minha visão, após conversas com jornalistas, é que há uma quantidade inacreditável de vazamentos de dentro da Casa Branca. Há facções em competição e trocas em cargos. De certa forma, nunca houve tanto acesso a um presidente. Mas, do ponto de vista legal, sinto que há mais tensão nas nossas negociações com o DoJ [Departamento de Justiça americano]. Nos bastidores, advogados de organizações jornalísticas conseguiam fazer reclamações para o DoJ, mas há menos disso agora, há mais suspeita de ambas as partes. No geral, as críticas e ataques repetidos pelo presidente contra a mídia criam uma atmosfera na qual pessoas estão duvidando dos jornalistas, e isso é uma pena.
ConJur — O senhor considera que a liberdade de imprensa está ameaçada nos EUA?
David McCraw — Não estou preocupado com mudanças de regras ou de leis. A Primeira Emenda está bem estabelecida e seria difícil mudar. A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei. Não importa quanta liberdade a imprensa possua numa sociedade se a imprensa não tem credibilidade. Se não há credibilidade, a imprensa não consegue movimentar o público e, em última instância, esse é o maior poder da imprensa. Eu me preocupo com a violência dirigida contra jornalistas. Em comícios do Trump, pessoas são encorajadas a gritar contra a imprensa e antagonizar repórteres. Só é necessária uma pessoa para criar uma ameaça, e essa atmosfera de ameaça e violência é muito perigosa.
ConJur — O Judiciário brasileiro reconhece a existência de um “direito ao esquecimento”, que não está previsto em nenhuma lei. E a imprensa tem sofrido com isso, inclusive judicialmente. Como o direito ao esquecimento funciona nos EUA?
David McCraw — O direito ao esquecimento claramente viola a Primeira Emenda, então toda decisão que tocou nisso foi a favor da imprensa, dizendo que temos o direito de manter nosso arquivo de histórias. Seria muito difícil o direito ao esquecimento se tornar lei nos EUA. O que vemos nos EUA não são leis de esquecimento como vemos na Europa, mas leis que são mais duras quanto a garantir que agentes do governo mantenham segredos. Selar históricos criminais, por exemplo. No estado de Nova York, por exemplo, há constantemente projetos de lei para selar registros criminais em casos de menor gravidade após cinco anos, de forma que eles ficariam indisponíveis. Se o jornal escreve sobre alguém cometendo um crime ou sendo condenado por um crime, nós não temos que tirar a matéria do ar. Se alguém vazar a informação, podemos publicar. Mas há um esforço para que o governo seja mais discreto com informações pessoais. Na Europa, o Google remove nossas histórias de pesquisas quando pessoas lá fazem a requisição. Mas, do nosso lado, as histórias ainda estão no nytimes.com, ainda estarão disponíveis. Então eu não vejo isso vindo para os EUA.
Embargos de terceiro para alegar posse sem registro devem ter prova, diz TRF-1
A prova verbal é admitida pelo sistema Judiciário desde que acompanhada de uma comprovação mínima. Com esse entendimento, a 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou pedido de desconstituição de penhora feito por um terceiro que se diz proprietário de um imóvel dado em garantia em uma execução fiscal.
A empresa autora sustenta que adquiriu o bem em 1985 por contrato verbal de compra e venda. Mas, em primeira instância, não conseguiu comprovar qualquer compromisso que tenha feito dela a proprietária da construção penhorada. Por isso, os seus embargos foram negados.
O relator do caso no TRF-1, juiz Rodrigo Rigamonte Fonseca, destacou que a Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça permite a oposição de embargos de terceiro para alegar posse com compromisso de compra e venda sem registro em cartório.
Porém, segundo o juiz, o pedido deve ser acompanho de prova do exercício da posse. E, para o magistrado, no caso dos autos, o embargante se fundamentou apenas em um alegado contrato verbal de compra e venda e na afirmação de que detém a posse direta do móvel.
“Ora, a prova verbal é perfeitamente admitida no nosso sistema jurídico, mas necessita de um mínimo de comprovação, o que não ocorreu nos autos, enquanto que a mera posse não é suficiente para comprovar a alienação do bem.”
Nesse sentido, não ficou comprovado que o embargante é o proprietário do bem, ou mesmo se e quando foi realizada a venda. Assim, é presumível que o imóvel continua na propriedade do executado, conforme entendimento unanime da turma. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-1.
Clique aqui para ler a íntegra da decisão.
Apelação Cível 0009329-13.2011.4.01.3904
Multa de R$ 243 mil por atraso em cirurgia é desproporcional, diz TJ-SC
A aplicação de uma multa pela Justiça tem o intuito de inibir o descumprimento da decisão judicial, não de obrigar o pagamento em si. Com base nesse entendimento, a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve decisão em favor do Estado contra execução que uma paciente movia por uma cirurgia de joelho determinada em liminar dois anos atrás.
Na ocasião, foi imposta multa diária pelo descumprimento que já alcançaria neste momento R$ 243 mil. A mulher teve o procedimento feito depois de outra decisão judicial sequestrar os valores necessários para a realização da cirurgia. Para o desembargador que relatou o caso, Luiz Fernando Boller, a multa por atraso da artroscopia é desproporcional e, por isso, votou pela anulação dela.
“É preciso pensar racionalmente e isto significa concluir que, se a condenação do Estado fosse levada adiante pela monta original de R$ 243 mil, o próprio orçamento necessário para o custeio da cirurgia de artroscopia no joelho direito da autora — e de tantos outros que aguardam na fila — estaria comprometido, implicando prejuízo reflexo até mesmo para a saúde da população catarinense”, argumentou. A decisão foi unânime.
Boller afirmou que o juiz detém poder para adotar medidas variadas a fim de garantir a satisfação do direito pleiteado pelos jurisdicionados, sempre em busca da efetividade de suas decisões. Da mesma forma, complementou, pode abrir mão delas caso a imposição não seja mais necessária. O sequestro do valor para a cirurgia, entendeu a câmara, garantiu o direito da paciente.
Clique aqui para ler a íntegra da decisão.
Apelação Cível n. 0302674-21.2014.8.24.0040
“Não importa se há liberdade de imprensa se a sociedade não confia nos jornais”
Em 1962, o jornal norte-americano The New York Times foi condenado a indenizar o comissário de polícia do Alabama em US$ 500 mil — uma bela fortuna para a época. O jornal havia publicado um anúncio de dez páginas comprado por um grupo de apoio a Martin Luther King Jr, e o texto criticava a polícia do Alabama, que havia prendido o ativista três vezes sem justificativa legal — o texto falava em sete prisões.
Poderia ser uma história singela sobre um processo judicial de outro país. Mas foi a última vez que o New York Times sofreu uma derrota num processo por difamação. Dois anos depois, a Suprema Corte dos Estados Unidos reformou a decisão e estabeleceu um parâmetro importante para a imprensa do país: em ações contra a imprensa, políticos e pessoas públicas é que devem provar que o jornal agiu com a intensão deliberada de provocar danos.
A decisão desencorajou quem desejasse usar processos judiciais como forma de intimidação, ou para ganhar dinheiro, conta David McCraw, vice-presidente jurídico do New York Times. Na época, segundo reportagem da revista Washington Lawyer, havia cerca de US$ 300 milhões em discussão em processos por difamação contra jornais. Hoje, a legislação do país está inteiramente estruturada em torno da Primeira Emenda à Constituição, que proíbe qualquer restrição à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, comenta o advogado, em entrevista exclusiva à ConJur.
Os resultados são vistos até hoje: entre 2010 e 2017, o jornal respondeu a 11 processos por difamação — nos EUA não existem crimes contra a honra e todos os casos ligados à liberdade de expressão são enquadrados em calúnia ou difamação, sempre cíveis. São dados de um país que considera a liberdade de expressão um valor moral, e não mais um direito constitucional.
“Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados por difamação”, diz McCraw. Segundo pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, em 2016, os veículos de comunicação brasileiros respondiam a 2,4 mil processos — só a ConJur, que acaba de completar 21 anos, tinha 31, quase o triplo do Times, jornal fundado em 1851.
McCraw explica que, ao contrário do que acontece na maioria dos países da Europa (e no Brasil), nos EUA os direitos de personalidade não são constitucionais. Portanto, o juiz não deve fazer nenhum tipo de valoração entre a liberdade de expressão e a privacidade ou “boa fama”, como diz o Código Civil brasileiro.
Por isso não estão entre as preocupações do advogado do maior jornal do mundo mudanças legislativas que restrinjam o trabalho do Times. “A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei”, afirma.
David McCraw passou a semana no Brasil. Esteve em São Paulo a convite da FGV Direito SP para falar sobre fake news, liberdade de imprensa e democracia. Além de advogado, McCraw é professor da Universidade de Nova York (NYU).
Leia a entrevista:
ConJur — Como se defende o maior jornal do mundo?
David McCraw — A lei nos EUA está de tal forma do lado das publicações que difamação não é uma preocupação como em outros lugares. Temos poucos casos de difamação. E, com o tempo, temos tido menos. Tivemos um pequeno aumento, mas, na maior parte, difamação não é comum nos EUA. Muito do que eu faço é focado no acesso à informação e a ajudar jornalistas a conseguir informações. Seja fazendo lobby com uma agência, seja ajuizando processos sob a Lei da Liberdade de Informação [Freedom of Information Act – Foia, em inglês]. Da mesma forma, estou profundamente envolvido com a nossa segurança internacional, garantindo que nossos jornalistas estejam seguros em zonas de conflito. Há outras coisas que surgem às vezes, como questões de direitos autorais, mas muito do que eu faço é trabalhar com nossos jornalistas, garantindo que eles terão acesso à informação e tentando evitar qualquer possível ação judicial que possa decorrer disso.
ConJur — Então não há muito de trabalho de defesa.
David McCraw — Eu faria a distinção entre “formal” e “informalmente”. Obviamente, passamos muito tempo falando de como uma reclamação informal não acabe se tornando uma ação por difamação ou um processo judicial. Isso é uma parte importante. Também passamos muito tempo antes da publicação falando com advogados, preocupados com o que a reportagem dirá. Esse tipo de defesa acontece o tempo todo. Litígio formal, nem tanto. Todo o resto é a parte maior do que fazemos.
ConJur — Os jornais sofrem com essas reclamações informais de difamação?
David McCraw — Não. A lei mudou de uma forma tão radical que difamação não é uma preocupação tão grande quanto era antigamente. Passamos às vezes um ano ou um ano e meio sem sermos processados. O New York Timesnão perde uma ação de difamação há, pelo menos, 60 anos. E o jornal não faz acordos financeiros. Se alguém nos processa e quer uma retratação ou correção, nós fazemos.
ConJur — Por que não?
David McCraw — Muitas vezes, advogados com um caso fraco abrem processos só para ver se conseguem alguma coisa num acordo. Mas acreditamos que afastamos esse tipo de ação com essa postura de não fazer acordos. Pesquisamos de onde veio essa política e descobrimos uma carta de 1922 em que um editor escreveu para um advogado que tinha feito um acordo num caso para dizer “não faça isso de novo!”. Isso é muito debatido internamente. Houve um caso em que gastamos US$ 700 mil para a defesa, e a outra parte disse que aceitaria US$ 25 mil num acordo. Mas consideramos importante continuar com o processo porque era importante marcar nossa posição, criar um limite e defender nosso jornalismo.
ConJur — A quantas ações o jornal responde?
David McCraw — Contamos recentemente: entre 2010 e 2017, respondemos a 11 ações por difamação. Em oito anos, 11 ações.
ConJur — No mundo inteiro?
David McCraw — Houve uma época, uns dez anos atrás, em que chegamos a responder a sete ou oito ações internacionais por difamação, na China, na Alemanha, na Indonésia, entre outros. Chegamos a nos preocupar com ter que lidar com processos internacionais, já que a lei é tão diferente em outros países e tão favorável aos requerentes. Mas isso nunca aconteceu, a tendência não continuou.
ConJur — Tem explicação?
David McCraw — Em parte porque o Congresso aprovou uma lei, em 2011 ou 2012, que impede alguém que tenha ganhado uma ação fora dos EUA de executar a decisão. Então a pessoa não pode ir aos EUA retirar o dinheiro, fazer a cobrança. Uso muito isso em palestras: a lei foi aprovada por unanimidade, por todos os democratas e todos os republicanos, para proteger a imprensa e a indústria. Então é irônico que tenhamos chegado aonde chegamos, com a imprensa alvo de tantas críticas.
ConJur — O que motivou essa lei? Havia muitas ações contra jornais?
David McCraw — O que acontecia era que pessoas acusadas de financiar o terrorismo, de serem oligarcas russos, enfim, estavam indo para Londres, processando jornais americanos e ganhando casos importantes. E o Congresso ficou convencido de que essa era uma maneira que aqueles que financiavam terrorismo e crime internacional tinham encontrado para silenciar o jornalismo americano. E passaram essa lei. Ela diz que, se um autor ganhar numa jurisdição estrangeira, a decisão só pode ser executada nos EUA se o país do autor tiver os mesmos padrões de liberdade de expressão e de imprensa que os Estados Unidos. Os ingleses se ofenderam bastante, porque a mensagem foi que seu sistema judicial não estava à altura do nosso. Mas desde então o sistema deles foi reformado para garantir mais proteção aos jornais.
ConJur — E de que forma as leis nos EUA ficaram mais favoráveis à imprensa?
David McCraw — Se uma figura pública, uma celebridade, uma autoridade eleita, um astro, qualquer pessoa proeminente quiser ganhar uma ação de difamação nos Estados Unidos, ela tem que provar que a história é falsa e que houve malícia, ou intenção deliberada de causar prejuízos ao autor, por parte do editor, e deve provar o chamado “imprudente descaso com a verdade”. Ambos os conceitos são importantes, porque estabelecem que o ônus da prova não é do jornal. Diferentemente do que acontece em muitos países, o jornal não tem de provar que a história é verdadeira — o autor é que tem de provar que a história é falsa. E mesmo que ele consiga, o jornal tem a defesa de alegar que o editor acreditou que a história fosse verdadeira. E se ele acreditou, não importa que a notícia estivesse errada. Tudo isso torna muito difícil que os jornais percam. E a legislação sobre o assunto é assim há mais de 50 anos.
ConJur — Isso vale para “pessoas normais” também?
David McCraw — Há outras proteções estabelecidas. Indivíduos privados têm um ônus menor, é mais fácil para eles. Quando estamos revendo uma história antes da publicação, focamos nos personagens menores da história, os personagens incidentais da reportagem, porque eles tendem a ser os que processam, e o ônus deles é menor.
ConJur — A reputação do jornal pesa nessas horas?
David McCraw — Quero fazer uma distinção entre os padrões que estabelecemos internamente para nós mesmos e as defesas que nós faríamos se fôssemos processados.
Internamente, não nos importamos com o padrão jurídico, queremos é estar certos. Não olhamos para uma história e pensamos “isso realmente parece errado, mas acreditamos que está certo, então vamos publicar”. Queremos ter certeza de que estamos certos. Então somos muito cuidadosos com reputações e com a nossa reputação, tendo certeza de que vamos reportar o que aconteceu e, se cometermos um erro, vamos corrigi-los. Esse é o padrão ético que nós estabelecemos como jornal.
Se algo der errado e formos processados, vamos argumentar o padrão legal de que acreditamos que a história fosse verdadeira. Quando é sobre uma figura pública, esta é a nossa responsabilidade: demonstrar que acreditávamos que a história era de fato verdadeira. E isso milita a nosso favor, porque se eu, como advogado, ponho pressão num jornalista para confirmar fatos, voltar e fazer outra entrevista, isso é evidência de que nos importamos com a verdade. Mesmo se errarmos, nosso comportamento mostra que agimos de boa-fé, que realmente acreditamos que aquilo fosse verdade.
ConJur — Complicada a defesa de quem está do outro lado, não? Quando o New York Times comete um erro, ele se torna verdade.
David McCraw — Isso era uma preocupação maior antes da internet, e acredito que a internet seja parte da razão pela qual o número de ações por difamação caiu. Outra parte tem sido a lei, claro. Mas creio que as pessoas sentem que, se elas foram injustiçadas por uma reportagem, se as suas reputações forem maculadas, a história for falsa, elas podem levar sua própria versão dos fatos a público, pela internet. A voz do New York Timesnão é mais tão única e potente quanto era. Costumava ser assim mesmo, se o Times dissesse algo, não havia voz que competisse, ou as vozes competindo eram menores. Agora há todas essas vozes competindo por aí. E vejo isso como uma das razões para o sucesso de Donald Trump.
ConJur — Como assim?
David McCraw — Se ele não gosta da nossa reportagem, ele não precisa nos processar ou pedir uma correção. Ele vai para o Twitter e dá a versão dele. Pode não ser uma versão verdadeira, mas ele não sente que precisa nos processar ou exigir uma correção. Aliás, essa é uma terceira coisa importante: é tão mais fácil hoje consertar uma história! Se algo sai errado de manhã, à tarde já está corrigido na versão on-line. Antes, se algo saísse errado, uma pessoa que comprasse o jornal leria aquela informação errada para sempre. É quase impensável que qualquer pessoa que lesse o jornal descobrisse que publicamos uma correção em outra edição uma semana depois, quando o erro fosse descoberto. Agora eles podem ver que corrigimos a história, o que é uma evolução muito positiva.
ConJur — Como o jornal lida com o erro?
David McCraw — Outra coisa que fizemos para sermos responsáveis foi criar centros on-line para os leitores. Esses centros permitem que pessoas escrevam para o jornal e tenham editores explicando por que fizeram algo, ou por que acharam que algo era justo. Isso abriu a instituição e foi importante. As pessoas podem ver que nos importamos com a verdade, podem entender melhor como fazemos as coisas. Muitas vezes as histórias são sobre como fazemos a cobertura e como o jornalismo funciona. Outras vezes alguém diz “essa história parece injusta”, ou alguém dirá “aquela ilustração parece tendenciosa”, e os editores dão retorno direto para os leitores. Isso ajuda. Também fizemos algo extraordinário no ano passado: abrimos a redação do jornal para a filmagem de um documentário, em quatro partes, para o canal Showtime. Mais uma vez, isso ajuda as pessoas a ver como repórteres trabalham. Alguns dizem que o programa só mostrou um monte de gente datilografando, mas enfim.
ConJur — Essa proteção à imprensa funciona da mesma forma em casos que envolvem segurança nacional?
David McCraw — Esses casos são interessantes. A Lei de Espionagem está em vigor há 101 anos e em 101 anos nenhuma publicação foi processada com base nela. É uma lei claramente feita para pessoas como Edward Snowden, que era um consultor do governo. Claramente se aplica a servidores públicos. Nunca houve litígio sobre se essa lei se aplica a jornais que divulgam essas informações. Está na letra da lei “divulgação sem autorização”, mas nós alegaríamos que a Primeira Emenda protege nosso direito de publicação. O governo tem vastos poderes de proteger segredos, mas, quando eles vazam, a imprensa tem vastos poderes de publicar segredos. Obviamente levamos muito a sério quando recebemos informações confidenciais — nosso protocolo normal é sempre perguntar ao governo sobre questões confidenciais que vamos publicar. Não damos poder de veto, mas procuramos saber quais seriam as preocupações deles, porque é difícil saber quais danos a divulgação desse tipo de informação pode causar. O presidente Trump tem tuitado bastante sobre como é ruim a divulgação dessas notícias, mas eu acho que isso torna o país mais forte, cria uma janela para uma parte muito importante da nossa política.
ConJur — Pelo que se divulga sobre essas reportagens, a pressão do governo sobre o jornal costuma ser bastante pesada. Quando o Times revelou que a NSA estava usando suas ferramentas para espionar americanos dentro dos EUA, por exemplo, o governo alegou que, se a reportagem fosse publicada, um dos principais programas de combate ao terrorismo doméstico acabaria. Como uma entidade privada como um jornal pode tomar uma decisão desse tamanho?
David McCraw — Um jornal nunca tem informações suficientes. Nunca sabemos o futuro e o que acontecerá quando publicarmos as nossas informações. Mas parte do processo é tentar entender se, na nossa visão, um programa é ilegal e se é algo que o público deveria saber, porque o governo está tomando decisões políticas que são muito importantes. Os repórteres recebem muito feedback de suas fontes dentro do governo, o que nos ajuda a tomar essas decisões difíceis.
Cobrindo a primeira história sobre a vigilância da NSA, em 2004 e 2005, uma das coisas que convenceu os editores é que sabíamos que pessoas no Departamento de Justiça achavam que o programa era ilegal. Isso, para nós, sugeria que, se no governo havia perguntas e preocupação sobre a base legal do programa, isso era algo que as pessoas deveriam saber.
Isso se aplica à divulgação dos documentos de Snowden. Não fomos os primeiros, o Washington Post e o Guardian publicaram a primeira leva, nós estávamos na segunda. Mas o interessante foi que o ex-presidente Obama, no final de seu mandato, disse que, primeiro, Snowden deveria voltar e ser julgado (isso não me surpreendeu) e, depois, que a divulgação deveria começar um debate sobre quanta publicidade queremos e quanta segurança queremos. E ele disse que há poucos países no mundo onde esse debate é possível, onde essa informação poderia ter sido divulgada, o que demonstra a força do país. Esse discurso foi muito importante.
ConJur — Existe proteção para o sigilo da fonte?
David McCraw — A área de fontes confidenciais é muito difícil. A lei do Estados Unidos é desfavorável à imprensa e pouco clara. Na maioria dos estados, há proteção na lei para manter uma fonte secreta. Se alguém fala com um de nossos repórteres e diz “eu não quero ser identificado”, podemos garantir esse direito num tribunal estadual, e no estado de Nova York isso é um direito absoluto: se alguém, um investigador ou parte num litígio, quer saber quem foi nossa fonte, podemos dizer que a lei nos protege e não sou obrigado a dizer. E isso funciona.
ConJur — Na Justiça Federal não é assim?
David McCraw — Nos tribunais federais, esse não é o caso. Há divergências entre as cortes sobre se há ou não proteção. Num caso famoso, um ex-repórter do New York Times chamado Jim Risen recebeu a ordem de revelar suas fontes. Ele cobriu uma história sobre um programa da CIA que deu errado, e o governo estava processando um agente da CIA dizendo que ele havia vazado a informação. Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte. O caso durou anos e finalmente uma corte de apelação decidiu que não existe direito de um repórter preservar o segredo da identidade de uma fonte num caso criminal, uma decisão muito controversa e da qual discordamos. Interessante foi que, ainda assim, Jim Risen se recusou a dar o nome da sua fonte e finalmente os promotores simplesmente desistiram.
ConJur — O que aconteceu?
David McCraw — O governo processou o agente da CIA e ganhou, provando o nosso argumento inicial de que eles não precisavam que Jim revelasse a identidade da sua fonte. Mas a lei é incerta. É difícil para os repórteres, porque eles têm que prometer confidencialidade. Se um repórter do New York Times está fazendo uma reportagem e diz para uma fonte “eu protejo sua identidade” e, depois da publicação, há um litígio estadual, o repórter jamais terá que revelar sua fonte. Mas se o litígio for na esfera federal, aí ninguém sabe. Ninguém pode prever na hora qual jurisdição estará envolvida. Mas repórteres nos EUA algumas vezes preferem ir para a cadeia a revelar suas fontes.
ConJur — O que acha do Patriot Act [lei que dispensa autorização judicial para interceptações de comunicações em investigações por terrorismo]?
David McCraw — Com o Patriot Act e outros que o seguiram, nossa principal preocupação como uma organização de notícias é o direito do governo de conseguir de forma secreta informações sobre pessoas através de provedores de internet ou serviços telefônicos. Há mecanismos na lei que permitem ao governo, durante uma investigação de segurança nacional, ir ao Google ou à Microsoft ou empresas de telefonia e conseguir essas informações. Isso nos preocupa, claro. Achamos, embora seja difícil ter certeza, que esse poder não foi usado muito frequentemente, mas, quando ficamos sabendo de casos, isso nos preocupa muito. Houve alguns casos durante a administração Obama, quando e-mails e ligações telefônicas de repórteres (um repórter da Fox News e um grupo de repórteres da Associated Press) foram obtidas de forma sigilosa. Como resultado disso, fomos ao Departamento de Justiça e pedimos a eles que reforçassem suas regras internas sobre quando o governo pode fazer coisas assim para pegar informações de jornalistas. E isso foi um sucesso, eles reforçaram as regras.
As regras internas são meio complicadas, mas essencialmente elas dizem que agentes governamentais investigando crimes podem pegar informações sobre jornalistas como último recurso. Os agentes ou promotores têm que provar ao procurador-geral que não há nenhuma outra forma de conseguir essa informação. E as regras funcionam. Obviamente, às vezes elas falham, como vimos em alguns casos. Mas, em geral, elas são uma restrição importante contra a ação governamental. A razão que sabemos que elas funcionam é que a administração Trump quer mudá-las para tornar mais fácil.
ConJur — A administração Trump mudou o relacionamento do jornal com o governo?
David McCraw — Não posso falar pelos jornalistas, não sei se ficou mais fácil ou mais difícil. Minha visão, após conversas com jornalistas, é que há uma quantidade inacreditável de vazamentos de dentro da Casa Branca. Há facções em competição e trocas em cargos. De certa forma, nunca houve tanto acesso a um presidente. Mas, do ponto de vista legal, sinto que há mais tensão nas nossas negociações com o DoJ [Departamento de Justiça americano]. Nos bastidores, advogados de organizações jornalísticas conseguiam fazer reclamações para o DoJ, mas há menos disso agora, há mais suspeita de ambas as partes. No geral, as críticas e ataques repetidos pelo presidente contra a mídia criam uma atmosfera na qual pessoas estão duvidando dos jornalistas, e isso é uma pena.
ConJur — O senhor considera que a liberdade de imprensa está ameaçada nos EUA?
David McCraw — Não estou preocupado com mudanças de regras ou de leis. A Primeira Emenda está bem estabelecida e seria difícil mudar. A maior ameaça é o ataque à credibilidade e a tentativa de encorajar cidadãos a não prestar atenção à imprensa e a acreditar apenas no governo ou apenas num grupo de pessoas. Isso me preocupa e, de certa forma, é a mesma coisa que mudar a lei. Não importa quanta liberdade a imprensa possua numa sociedade se a imprensa não tem credibilidade. Se não há credibilidade, a imprensa não consegue movimentar o público e, em última instância, esse é o maior poder da imprensa. Eu me preocupo com a violência dirigida contra jornalistas. Em comícios do Trump, pessoas são encorajadas a gritar contra a imprensa e antagonizar repórteres. Só é necessária uma pessoa para criar uma ameaça, e essa atmosfera de ameaça e violência é muito perigosa.
ConJur — O Judiciário brasileiro reconhece a existência de um “direito ao esquecimento”, que não está previsto em nenhuma lei. E a imprensa tem sofrido com isso, inclusive judicialmente. Como o direito ao esquecimento funciona nos EUA?
David McCraw — O direito ao esquecimento claramente viola a Primeira Emenda, então toda decisão que tocou nisso foi a favor da imprensa, dizendo que temos o direito de manter nosso arquivo de histórias. Seria muito difícil o direito ao esquecimento se tornar lei nos EUA. O que vemos nos EUA não são leis de esquecimento como vemos na Europa, mas leis que são mais duras quanto a garantir que agentes do governo mantenham segredos. Selar históricos criminais, por exemplo. No estado de Nova York, por exemplo, há constantemente projetos de lei para selar registros criminais em casos de menor gravidade após cinco anos, de forma que eles ficariam indisponíveis. Se o jornal escreve sobre alguém cometendo um crime ou sendo condenado por um crime, nós não temos que tirar a matéria do ar. Se alguém vazar a informação, podemos publicar. Mas há um esforço para que o governo seja mais discreto com informações pessoais. Na Europa, o Google remove nossas histórias de pesquisas quando pessoas lá fazem a requisição. Mas, do nosso lado, as histórias ainda estão no nytimes.com, ainda estarão disponíveis. Então eu não vejo isso vindo para os EUA.
Juiz confirma posse de carro pelo Facebook e manda bloquear veículo
Para confirmar que um réu que vinha fugindo de uma execução estava na posse de um carro, o juiz Enéas Costa Garcia, da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi ao Facebook. Lá, encontrou fotos do homem com o veículo e determinou o bloqueio do carro por meio do RenaJud.
Ao reformar decisão de primeiro grau, o magistrado entendeu que “a propriedade se transfere com a tradição, de modo que o fato de o veículo constar em nome do irmão do executado não é decisivo para atribuição da propriedade”.
Garcia acolheu os indícios apresentados pelo advogado da autora da ação, Guilherme Assad Torres. Torres incluiu nos autos prints de mensagens e grupos no Facebook em que o executado anuncia um veículo como sendo de sua propriedade, ofertando para venda.
O magistrado determinou, como medida acautelatória, o bloqueio da transferência do carro por entender que o caso apresenta risco de dano “pela tentativa de alienação do bem, havendo indícios de que o executado seria proprietário”.
Além disso, entendeu não haver a necessidade de bloquear a circulação, mesmo porque o executado pode conservar a posse do bem penhorado, e também não cabe bloqueio de licenciamento, o que coloca o bem na irregularidade, medida que se reverte até mesmo em prejuízo do interesse da exequente.
Histórico
O caso trata de uma ação, de janeiro de 2017, em que o executado foi condenado a indenizar uma mulher em aproximadamente R$ 52 mil por danos morais, materiais e lucros cessantes. Na fase de cumprimento de sentença, depois de intimado para o pagamento, o executado não se manifestou.
Após pesquisa nos sistemas Renajud e o Bacenjud, o advogado da parte vencedora não encontrou bens registrados no nome do executado. Ele fez ainda uma busca no Facebook, onde encontrou o homem anunciando a venda de um veículo, que afirmava ser de sua propriedade.
No entanto, a primeira instância negou o bloqueio. Segundo o juízo, ainda que o executado tenha a posse do veículo e se intitule proprietário do mesmo, não há comprovação do domínio. Ao contrário, o proprietário do carro é seu irmão.
O advogado argumentou que a possibilidade de bloqueio de bens em nome de terceiros é entendimento pacífico dos tribunais. Além disso, para ele, “resta evidenciado que o executado busca livrar-se de bem patrimonial a fim de ver-se livre das obrigações financeiras, em evidente fraude à execução”.
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Processo: 2133562-47.2018.8.26.0000